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quarta-feira, 29 de julho de 2020

RdN - Contos Ocultos #Capítulo IV

Capítulo IV

O despertador tocou em algum lugar do quarto escuro. Uma mão pequena saiu debaixo do amontoado de edredom e travesseiros e tateou a base de um abajur em cima de um pequeno criado-mudo, não achando o causador do barulho a mão escorregou até a alça da primeira gaveta, puxou-a e adentrou a procura do objeto, sentiu alguns lápis, papéis e outras coisas, tinha que encontrar logo aquele treco ou sua cabeça iria explodir. Achou. Pressionou o botão do aparelho para fazê-lo calar, sabia que cinco minutos depois aquela tormenta voltaria acontecer, a mão retornou para baixo das cobertas onde estava quentinho e macio. 

Silêncio. 

Passaram-se apenas alguns segundos e o barulho irrompeu ainda mais alto que na primeira vez. Não era possível! Aquela maldita bugiganga só podia estar quebrada, dessa vez a mão saiu com rapidez e ligou o abajur, pegou o despertador e parou com ele sob o campo de luz da luminária, uma segunda mão abriu uma fresta entre um travesseiro e o colchão revelando um par brilhante de olhinhos castanhos, meio fechados por causa da claridade, tentando focalizar as horas no aparelho. 6h05min. Que coisa! Mal tinha fechado os olhos e se passaram cinco minutos. Agora mais acordada podia ouvir o som da TV ligada vindo da cozinha no andar de baixo, onde sua mãe estava preparando o café, contou até três mentalmente e quando acabou ouviu a frase que tanto odiava.

- Sofia, acorda minha filha, ta na hora, são seis e meia!

Que exagero! Por que ela fazia isso? Será que não percebia que isso era cruel? Antes, toda vez que falava isso seu coração disparava, parecia que ia enfartar, pensava estar atrasada para aula, por isso comprou um despertador, para ela nunca mais enganá-la, mas o lado ruim da historia é que toda vez que o aparelho tocava sua mãe ouvia, por isso guardava-o na gaveta. Teve vontade de descer e falar umas coisas que com certeza na hora surgiriam, mas a preguiça e o sono eram maiores. Lá embaixo ainda se ouvia a voz de sua mãe misturada ao som da TV.

-... Fica até de madrugada fazendo sabe-se-lá-o-quê, dá nisso, sabe que tem que acordar cedo. SOFIA SERÁ QUE EU VOU TER QUE IR AÍ EM CIMA TE TIRAR DA CAMA?

- Pronto, já vou, já vou, JÁ ACORDEI! Ai, que coisa chata!

Sofia se espreguiçou até seus ouvidos zumbirem, sentou na cama e olhou em volta. 

Apesar da pouca claridade dava pra ver que o quarto estava uma zona, tinha roupa espalhada por todos os lugares até na mesa do computador, seus livros, cadernos e desenhos estavam esparramados entre sua cama e a parede onde havia uma janela, essa era a única janela do cômodo e tornou-se sua parte favorita do quarto, através dela dava para avistar sua árvore, um pé de carambola, e a rua da frente de sua casa. Graças a ela, toda vez que ouvia barulho de carro estacionando ou da campainha tocando, conseguia ver quem eram as pessoas que chegavam e isso era muito útil, pois lhe dava tempo de esconder-se das indesejadas como sua tia Ana Maura que sempre vinha com um cordial “Olha como essa menina ta grande” seguido de uns apertões nas bochechas e uns comentários sobre seu peso “Mas ela ta muito magrinha Paulinha, vocês não dão comida pra essa menina não”, e por fim a pergunta se ela já havia arrumado um namorado, como a resposta era um forte “Não!” geralmente dito por seu pai quase que de imediato, o último comentário era sempre “Mas também. Tem que melhorar essa aparência, ela ta muito desleixada, parece àqueles hippies”

Mas, recentemente, aquela janela também tinha algo de especial, principalmente tratando-se de sua árvore. Várias vezes ela jurou ver um homem vestido de preto sentado nos galhos daquela caramboleira observando-a, principalmente quando ia dormir ou no meio da noite quando acordava para beber água ou ir ao banheiro. Era sempre o mesmo cara, branco, magro com os cabelos rebeldes, vestido com uma roupa toda preta coberta por uma espécie de capa ou sobretudo, mas ela sabia que isso era obra da sua imaginação, onde já se viu um homem ficar sentado num galho de uma árvore no meio da noite ainda mais de sobretudo, tudo bem que as vezes a noite era um pouco mais fria que o dia, mas mesmo assim, só um louco para andar em Manaus vestido com um troço daqueles. 

Sofia nunca esqueceu a primeira vez que o viu, foi no ano passado, numa sexta-feira que não tinha aula por que era feriado de finados, ela estava muito triste lembrando-se de sua recente perda, a morte de seu avô. O quarto estava no escuro, chovia bastante, o céu estava negro apesar de serem quatro horas da tarde, o único som que se ouvia era das gotas batendo na janela misturado ao vento forte, ela estava sentada na mesma posição, observando os desenhos que se formavam com as gotas d’água escorrendo pelo vidro ao mesmo tempo em que as lágrimas rolavam pelo seu pequeno rosto. 

Um raio, um raio de tremer a casa inteira caiu na caramboleira ou bem perto, abafando o som de seu, até então, reprimido soluço, clareando o quarto inteiro, e no momento do clarão ela o viu. Sentado no galho, encharcado com os cabelos pingando caindo pelo seu rosto, poderia jurar que ele estava olhando para ela. Não se assustou, ao invés de correr chorando como faria a maioria das garotas, ela esperou pelo próximo raio, para ter certeza que vira aquele homem, e no clarão seguinte não estava mais lá, desde esse dia seu quarto está repleto de desenhos desse sujeito e com o passar do tempo perdeu seu medo, passou a crer que o homem é uma espécie de protetor, um anjo talvez, como naquele filme que gosta tanto onde o anjo se apaixona por uma mulher.

A porta do quarto se escancarou com estrondo, sua mãe estava parada na entrada com a boca entreaberta, preparando-se para começar a esbravejar, mas a única coisa que viu foi a porta do banheiro do quarto da filha se trancando. Sofia era rápida quando queria, no instante que ouviu a maçaneta do quarto girar, saltou da cama para o banheiro e se trancou. Seu micro system estava na prateleira acima do vaso, junto com seus materias de limpeza, ela o colocava ali por que era o melhor local para se ouvir música, dentro do banheiro ela poderia cantar a vontade, e o melhor, não ouviria sua mãe gritar. 

Os segundos que o aparelho de som levou para ler o cd foram uma eternidade, ainda ouviu sua mãe começar a resmungar alguma coisa sobre seu quarto bagunçado e suas roupas jogadas até que a música tocou, era um sucesso da banda Casulo, o volume estava no máximo, e daí que sua mãe estava para quebrar a porta com batidas secas, e daí que se atrasasse alguns minutos, aquela música fazia sua mente relaxar e esquecer dos problemas, ela dançava de baixo do chuveiro e cantava a plenos pulmões.

Passados quinze minutos, Sofia desceu as escadas correndo, já fardada e com a sua velha mochila nas costas, apressou-se em sentar logo na mesa e devorar seu café-da-manhã, pão com ovos, queijo e tucumã e um grande copo de suco de cupuaçu bem adoçado. Sua mãe sabia como lhe agradar. Dando uma mordida no pão olhou para seu pai sentado na cabeceira, já com sua habitual farda militar verde oliva lendo um jornal.

- Bom dia pai, sua benção.

- Deus te abençoe. – disse sem tirar os olhos do jornal – Olha só Ana Paula, mais um barco naufragou vindo pra cá, contando com esse é o segundo só esse mês.

- Terceiro. Hoje de manhã deu no jornal que outro naufragou nesta madrugada próximo de Parintins, estão dizendo que são as tempestades. Desse jeito as coisas não vão melhorar em nada lá na Aurora.

Ana Paula, a mãe de Sofia era turismóloga e dona da Agência de Turismo e Viagens Aurora, já seu pai Frederico era Tenente-Coronel do exército, conhecia quase todos os municípios do interior do estado devido as suas viagens de missões militares, e foi numa dessas viagens que conheceu sua esposa, ela estava liderando uma excursão com um grupo de turistas ao município de Tefé. 

Após terminar o café-da-manhã com rapidez, Sofia lavou as mãos e enquanto escovava os dentes olhou para seu pai.

- É o chenhor que bai me lebar pá aula hoche?

- Não minha filha, eu vou sair mais tarde hoje, sua mãe leva você.

A garota amarrou a cara, guardou a escova dental e saiu para a garagem, sempre preferia que seu pai a deixasse na escola, pois no carro dele ela podia escolher a música que tocava e conversavam com o ar-condicionado desligado e os vidros abaixados, além de calar a boca de suas colegas chatas e invejosas, pois seu pai além de ser um homem bonitão, estava fardado, e isso sempre chamava a atenção delas. Mas no carro da sua mãe, só ouvia o jornal da manhã, calada e sentindo um frio de congelar a ponta do nariz.

Sofia ia olhando pelo retrovisor sua caramboleira ficar para trás, o dia estava nublado e dentro do carro a mesmice. O jornal, o silêncio entre as duas, o vidro fechado e o nariz gelado. Ligou seu novo ipod que ganhou do pai nas férias de junho e colocou sua seleção de músicas para tocar, era o primeiro dia de aula após as férias de junho, na verdade as aulas cessavam na segunda quinzena de maio e voltavam na segunda quinzena de junho, mais os alunos sempre chamavam assim, férias de junho. Ela não estava nada ansiosa com a volta, seu pensamento era ocupado por apenas uma coisa, dentro de exatamente três semanas faria quinze anos. Minha nossa! Quinze anos!

 Pareceu uma eternidade para chegar a essa idade, mas agora que estava próxima não se sentia tão bem, seus pais com certeza iriam querer fazer um grande baile de debutante com recepção, troca de vestido, valsa e toda aquela caretice. Isso a apavorava, não iria pagar esse mico. Uma idéia acabara de lhe ocorrer, pediria para os pais lhe pagarem uma viagem. Uma viagem onde ela poderia escolher o destino, uma viagem aonde ela iria sozinha, sem perturbações, sem chatices, sem regras ridículas e cobranças. 

A idéia fez seu rosto se iluminar, percebeu pelo reflexo do retrovisor que estava sorrindo, e que já deveria estar fazendo isso há algum tempo, sorte que sua mãe não reparou, estava entretida com o jornal, ouvindo uma noticia sobre a atual enchente que já ultrapassava a antiga maior marca que nem reparou na filha. O carro parou num sinal, vários atores caracterizados com roupas de época entregavam papéis para as pessoas nos carros, aqueles papéis eram com certeza panfletos sobre uma peça teatral que, pelo visto deveria ser muito divertida. Sofia abaixou o vidro para apanhar um panfleto de um rapaz muito simpático vestido de bobo-da-corte.

- Fecha esse vidro Sofia. – disse sua mãe em tom severo – Quantas vezes já te falei...

Sua mãe foi interrompida pelo susto que tomou quando viu a cabeça do bobo-da-corte entrar pela janela aberta.

- Bom dia senhora e senhorita! – disse animadamente o ator, sorrindo revelando dentes muito brancos – Vossa majestade, o Rei, as convida para prestigiar a nossa peça...

- Sofia, fecha esse vidro. Por favor, rapaz, com licença. – sua mãe esticou o braço para alcançar o botão de fechar o vidro.

- Desculpe minha senhora só estou fazendo o meu trabalho, se não entregar todos esses panfletos vossa majestade, o Rei, manda me decapitar. – entregando os panfletos para as duas completou – Muito obrigado por ajudar esse pobre bobo ter alguns dias a mais de vida, e, por favor, prestigiem nossa peça, até mesmo a senhora com seu mau humor será bem-vinda.

O ator retirou a cabeça deixando sua mãe com cara de quem não acredita no que ouviu, Sofia tapou o rosto com o panfleto fingindo ler e trancou sua mandíbula com toda força para não soltar uma gargalhada. Essa ela mereceu! A princípio, Sofia pensou que sua mãe iria explodir em berros por causa do vidro aberto, mas enxugando as lágrimas dos olhos viu que ela estava com uma expressão abobada com o comentário do ator e não voltou mais a falar até parar o carro em frente à escola.

- Tchau minha filha, onze e meia no máximo...

- Não mãe, hoje não precisa vim me pegar, tenho um trabalho para fazer com as meninas depois da aula. – mentiu saindo do carro e guardando o panfleto na bolsa.

- E vocês vão fazer esse trabalho na casa de quem?

- A Gente vai fazer aqui na biblioteca mesmo. – mentiu novamente.

- Tem dinheiro pro lanche e pro almoço?

- Hum – rum, tenho.

- Ta bom filha, qualquer coisa me liga. 

 - Ta, tchau mãe. – bateu a porta do carro e segui para mais um monótono dia de aula, agradecendo por uma mentira tão deslavada ter colado. Como é que havia trabalho em grupo para fazer se era o primeiro dia de aula depois das férias de junho?

Durante toda aula Sofia ficava consultando o panfleto com os dias e horários da peça, havia um espetáculo às duas da tarde daquele mesmo dia, resolveu que iria assistir sozinha, não convidaria ninguém, até por que não tinha ninguém para convidar, Sofia era uma adolescente diferente, não tinha muitos amigos e não gostava de bater papo sobre banalidades. Decidiu que assim que saísse da escola procuraria alguma lanchonete para almoçar e caminharia lentamente até o Largo São Sebastião.

O último tempo de aula era sua matéria preferida, filosofia. O professor era um frei com uma longa barba, baixinho, gordo e careca de meia idade muito inteligente, seu nome era Antônio, frei Antônio, o melhor amigo de Sofia desde sua infância. O frei era o único que escutava suas opiniões e idéias, o único que debatia sobre questões inteligentes com ela, e o mais importante, era o único que realmente a conhecia. Por isso Sofia se destacava em suas aulas e também por isso os minutos passavam depressa, quando se deu conta a aula já havia acabado. Ela nem havia prestado atenção ao assunto, mas ouviu alguma coisa sobre Demócrito e materialismo. Ansiosa, saiu com velocidade mal se despedindo de frei Antônio, sabia que se parasse para conversar com o professor ele acabaria arrancando a verdade sobre o que ela iria fazer depois da aula. Não queria que o frei soubesse que ela havia mentido para sua mãe.

Frei Antônio já há salvou várias vezes de enrascadas, a pior dela foi há mais de um ano, quando seu avô morreu. Pensou que o mundo ia acabar não queria acreditar na noticia que seu pai, com a voz chorosa e lágrimas nos olhos, lhe contava. Não podia ser verdade. Um mescla de revolta, medo e tristeza a invadiu. Um trovão, e depois o som de gotas caindo a cada lágrima que escorria. Não era verdade, seu avô estava lá no mesmo bar, conversando com os amigos e sorrindo ao ver sua Princesinha, como a chamava, chegar para lhe abraçar. 

Sofia saiu correndo pela rua não dando ouvidos a gritaria de seus pais, só queria correr, sentindo a chuva tocar seu corpo e o vento forte fazer seus cabelos esvoaçarem, correr, correr era tudo que queria, não sabia aonde ia, mas seus pés a levaram até a igreja de frei Antônio, há quinze quarteirões dali. O frei acordou no meio da noite com pancadas na porta da igreja. Quem seria há essa hora? Encontrou Sofia sentada na escada de costas para a entrada, ensopada e aos prantos. Ligou para os pais dela somente três horas depois, quando já havia acalmado, enxugado, conversado e confortado a sua pequena amiga com uma xícara de chá morno. Sabia que os pais dela deveriam estar preocupados, pra não dizer desesperados, mas fez isso somente por que a garota pediu e por que gostava muito dela. Com certeza ela deu um grande susto em seus pais, mas era melhor que ela extravasasse do que ficar contendo aquilo guardado, destruindo-a lentamente por dentro, transformando-a numa pessoa amarga e seca.

O tempo parecia querer se fechar ainda mais, nuvens cinzentas cobriam quase todo o céu, se não chovesse, estaria perfeito para sua caminhada até ao Largo, sem o sol queimando sua cabeça, sem aquele calor insuportável de sua cidade. Saindo da escola, atravessou a rua e parou no conhecido lanche dos alunos, O Estudantil. 

Seu almoço seria um sanduíche natural e um suco de cupuaçu com leite, fez o pedido e enquanto esperava ficou imaginando como seria a peça, lembrou-se também como fazia tempo que não ia ao Teatro Amazonas, ele juntamente com o Largo e a Igreja de São Sebastião era o seu ponto turístico preferido, para ela, ali era um lugar mágico, pois fazia qualquer pessoa lembrar-se de uma era de ouro, um tempo que não volta mais, uma época encantada.

Comeu o sanduíche em dois minutos e virou o copo do delicioso suco de uma vez, ajeitou a mochila nas costas e seguiu em frente sem falar com ninguém, já havia traçado o melhor caminho mentalmente, subiria uma avenida por dois ou três quarteirões e depois viraria à direita, cortando caminho por uma rua com casas antigas e sem movimentação que hoje só servia de estacionamento, ponto de táxis e hotéis baratos. 

O tempo continuava completamente nublado e começava a esfriar um pouco tornando o clima ainda mais confortável para um passeio. Na esquina da avenida em que começava a rua pela qual cortaria caminho, Sofia se abaixou para amarrar os cadarços, demorou alguns minutos ajeitando os cordões, pois de alguma forma eles deram um nó, e foi aí nesse momento que tudo começou. 

Talvez se nada disso tivesse acontecido, talvez se ela não abaixasse o vidro para receber um panfleto, talvez se ela não parasse e nesses mesmos minutos em que passou desatando um nó de cadarço ela estivesse caminhando em direção ao Largo, jamais iria presenciar algo que mudaria para sempre sua vida, algo que somente ela, sozinha naquela rua, ouviu. 

Um grito, um grito pedindo por socorro, um grito de fazer todos os seus pêlos se eriçarem e aquela comichão chamada curiosidade crescer dentro de seu corpo.


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