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terça-feira, 8 de setembro de 2020

O Caso Delmo: Parte 3 - Depoimentos e o Soro da Verdade


Ouça no Spotify: https://open.spotify.com/episode/7wXii5Kvt9TMVBttaAh5UO?si=bQF1CCMuTma81XvjFVtwuQ

E aí pessoal, sei que já faz algum tempo desde a publicação do último episódio, porém diversos fatores como mudança de cidade, emprego e principalmente a pandemia do novo Coronavírus atrasaram bastante a continuação periódica dos trabalhos. Como vcs sabem o Reino do Norte é um podcast cuja produção é totalmente independente, feito única e exclusivamente por mim, sem nenhum apoio ou patrocínio, e isso significa que para cada 10 ou 15 minutos que vc escuta, foram necessárias cerca de 4h de trabalho que envolvem pesquisa, roteirização, gravação, edição e publicação. 
É, isso demanda tempo, foco e disposição para que vc ouça algo pelo menos de qualidade razoável, uma vez que as ferramentas que disponho são extremamente simples e limitadas (um smartphone e um notebook), por esse motivo eu peço sua compreensão e paciência. Prometo que irei fazer o possível para encurtar o tempo de intervalo entre as publicações.
Estamos em meio a uma pandemia e não há como negar que isso mudou muita coisa, algumas nem tanto, mas uma dessas mudanças foi a forma de trabalho adotada por várias pessoas, que para diminuir custos e evitar riscos, optaram pelo home office. Isso não foi diferente para mim, precisei me readaptar e tentar de alguma forma oferecer o meu trabalho simples, mas com muito esforço e dedicação, de edição de podcast. Então se vc ou alguém que conheça, tem interesse em produzir conteúdo nessa mídia, entra em contato pelo e-mail: cartasnortenhas@gmail.com, o link está na descrição do episódio, mas caso vc não conheça ou não se interesse, eu agradeço sua audiência e ficaria muito feliz só de vc compartilhar e divulgar este trabalho.
Bom, sem mais delongas, fiquem agora com o terceiro episódio do Caso Delmo.

#vinheta de abertura

Aqui é Sherman Cardoso do Reino do Norte, e este é o terceiro episódio do Caso Delmo, crime ocorrido em Manaus no começo dos anos 50.
Se de alguma forma você veio parar aqui sem ter ouvido os episódios anteriores, eu recomendo que pare, volte e ouça do início.

Nos episódios anteriores, eu optei por narrar as matérias publicadas e a forma de abordagem utilizada pela imprensa da época. Isso porque era necessário você entender toda a linguagem rebuscada, minuciosa e parcial, sem contar a total falta de pudor com a riqueza de detalhes e sensacionalismo leviano que precederam e sucederam o caso.
Mas esse estilo de abordagem jornalística ficou no passado, e não é mais utilizado nos dias de hoje, não é mesmo??? Ou será que não?

#Áudio Drama 

É, talvez tenhamos uma parte da imprensa que ainda utiliza esse formato recheado de preconceito, discriminação, homofobia e outras tantas mazelas sociais que incitam o ódio gratuito e formam opiniões rasas, ultrapassadas e fundamentadas em um conservadorismo hipócrita.
Esse é o motivo para que casos como o de Delmo sejam estudados e não caiam no esquecimento com o tempo. Pois como diria Edmund Burke, filósofo irlandês do século 18: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”
Mesmo sendo clichê, eu adoro essa frase.

Na manhã do dia 31 de janeiro de 1952, uma quinta-feira, Delmo Pereira Campelo, um estudante com 19 anos de idade se apresenta a delegacia de polícia e confessa a autoria de dois crimes: Agressão a Antônio Firmino, vigia da serraria pereira, e o assassinato de José Honório, um taxista da época.
Na tarde desse mesmo dia, a polícia conduz Delmo ao local do crime para fazer a reconstituição dos fatos, porém o crime já havia repercutido em toda Manaus, isso significa dizer que a coisa toda começava a dar indícios de que sairia do controle. (iniciar dramatização da cena do crime) A reconstituição contou com a presença dos taxistas revoltados e da imprensa, que registravam tudo que ocorria, do seu modo bem peculiar. 
Em outras palavras: A Cena do crime era um verdadeiro circo.

#Áudio Drama 

Delmo passa 5 dias preso, do dia 31 de janeiro a 5 de fevereiro. Em cada um desses dias, houveram pelo menos uma nova versão da confissão. Delmo, sob forte pressão, alterava constantemente seu depoimento, incluindo, retirando, isentando ou culpando alguns personagens. 
Pra facilitar, vou resumir as versões por dia:

• Dia 31 de janeiro, quinta-feira 
Delmo confessa apenas a participação na agressão, porém algumas horas depois confessa todo o crime. Diz não conhecer os cumplices, e relata apenas o nome Raimundo, alegando que esse foi o autor dos disparos e agressão.
Durante a reconstituição surge uma nova versão dos fatos, onde Delmo alega ter sido ele o autor dos disparos no chofer.
À noite, Delmo declara que conheceu os envolvidos na tarde de terça, no cassino Muiraquitã.


• Dia 01 de fevereiro, sexta-feira 
Delmo muda o depoimento durante uma nova reconstituição, as 2h da madrugada, dessa vez sem a presença da imprensa ou do grupo de taxistas. Longe de todos os curiosos, o estudante alega ser o único autor, sem cúmplices ou testemunhas.
Depois foi a vez do professor de Delmo, Dr. Antunes de Oliveira interrogar o jovem, que afirmou ser o único autor da agressão, porém o homicídio havia sido cometido pelo tal Raimundo e por um novo personagem: Roberto. Informou também que os três fizeram juramento de morte caso alguém revelasse o crime.

• Dia 02 de fevereiro, sábado 
O único veículo de imprensa que circulava era O Jornal, acredito que houve uma confusão do jornalista da época, pois nessa matéria surge os nomes de Raimundo e Alberto como os suspeitos informados por Delmo no dia anterior. Entretanto, nesse dia, Delmo muda mais uma vez o depoimento, e após oração diante da imagem de Nsa. Senhora, o que pra época era considerado algo de muita seriedade, ele afirma ser o único autor de ambos os crimes. 

• Dia 03 de fevereiro, domingo 
Delmo sustenta a versão que agiu sozinho e por conta própria, que tudo fora ideia sua e que seu amigo Maximiliano Trindade poderia confirmar que o vira na noite de quarta para quinta, sozinho no boteco sombra. Obvio que as autoridades não acreditam que Delmo agiu sozinho, e por isso a insistência em tantos interrogatórios. A imprensa por sua vez faz questão de mencionar a calma e tranquilidade com que Delmo relata os fatos a cada depoimento, sempre ressaltando sua frieza.

• Dia 04 de fevereiro, segunda-feira 
A família Pereira recebe uma ligação anônima ameaçando-os caso Delmo revele seus cumplices. A senhora Cristina Pereira, mãe de Delmo, informa a polícia que a voz ao telefone era de Antônio Muniz, ex-funcionário da serraria que era conhecido pelo apelido de “Mal-de-Vida". Ao saber da notícia, um grupo de 23 taxistas se dirigem a casa do suspeito e meio a confusão entre leva-lo para delegacia e mata-lo, optam pela primeira opção. Assim que soube desse ocorrido, Delmo atualiza seu depoimento e diz que o tal Raimundo na verdade era o mal-de-vida, e que o mesmo fora o responsável pelo homicídio do chofer.
Vale ressaltar dois detalhes: o primeiro é que antes de acusar mal-de-vida, Delmo pede garantias de que estará em segurança, caso confirme a participação do suspeito. 
O segundo é o fato de mal-de-vida na manhã do dia 31 de janeiro, informar a algumas pessoas o paradeiro do carro de José Honório, e não ter sido mais visto pela cidade nos dias seguintes. Isso foi o suficiente para levantar as suspeitas sobre ele.
Porém, como nada nesse caso é simples, horas depois, diante da imprensa, dos agentes policiais e  dos advogados, Delmo altera seu depoimento mais uma vez, alegando ser o único autor dos crimes, e sugere que para atestarem a veracidade de sua palavra, que lhe apliquem o soro da verdade.
A mudança repentina no depoimento de Delmo teve reação imediata dos taxistas, após 4 dias o grupo exigia respostas. Na companhia do advogado Dr. Nonato de Castro foram pressionar o governador Álvaro Maia, que promete ajudar a pôr um ponto final no caso. Delmo concorda em ser interrogado pelo Dr. Nonato, e reafirma ser o único autor, negando conhecer mal-de-vida.
Toda essa situação corrobora para o surgimento de inúmeras teorias sobre o que de fato ocorreu na estrada de Campos Sales, as pessoas passam a especular nas rodas de conversas e aumenta ainda mais o clima de tensão. 

• Dia 05 de fevereiro, terça-feira 
Conforme sugerido por ele mesmo, Delmo foi levado à tarde para o Serviço de Socorro e Urgência, o SSU, localizado na av. Joaquim nabuco, onde nos dias de hoje se encontra um prédio da secretaria de segurança. Lá, Delmo com medo de morrer no procedimento pediu para se confessar e só assim, sob supervisão do médico Gilson Vieralves, recebeu a medicação. Um composto de escopolamina e pentotal.
Estavam presentes o advogado de defesa, João Ricardo de Araújo Lima, o advogado da união beneficente dos choferes do amazonas, Nonato de Castro, o chefe de polícia, Manuel da Rocha Barros, o Promotor público Domingos de Queiroz e o curador de menores, Francisco Xavier de Albuquerque. Do lado de fora, uma multidão começava a se formar,
Delmo foi interrogado por algumas horas mais uma vez, agora sob efeito do Soro da verdade.
O depoimento permaneceu na vertente de que era o único autor de ambos os crimes. Não havia cumplices e que ele agira sozinho o tempo todo. 

Era isso. 
Sem novas pistas, e após todos esses dias, as autoridades deram o caso por encerrado.
Não havia mais o que questionar, Delmo confessara a autoria dos crimes. Estava preso e iria a julgamento. 
Eu não sou criminalista, e nem especialista no assunto, mas eu arrisco dizer que em 1952, se um estudante de 19 anos, de família abastada, sem antecedentes criminais, que se apresenta espontaneamente a uma delegacia de polícia confessando seus crimes, e de certa forma cooperando com as investigações, teria sua pena atenuada e não ficaria preso por muito tempo. 
Se nos dias de hoje, onde temos a participação mais ativa da população e um sistema jurídico mais consolidado, ainda assistimos a tantas impunidades dos privilegiados e a desproporcionalidade penal aos menos favorecidos, não é muito difícil de imaginar qual seria o desfecho provável se essa história fosse pela via comum.
Mas ela não foi...

Às 19h30 daquela mesma terça-feira, após ter sido submetido a mais um interrogatório, dessa vez sob efeito de escopolamina e pentatol, o tal soro da verdade, Delmo abordo de uma ambulância e escoltado por apenas um único policial desarmado, deixava o SSU em direção a delegacia localizada na rua Marechal Deodoro. 

A ambulância seguiu pela Av. Joaquim Nabuco, passou pelo cruzamento da av. Ramos Ferreira e mais a frente virou à direita na rua Lauro Cavalcante e já estavam chegando na esquina com av. Getúlio Vargas, quando o veículo é tomado de assalto por um grupo de pessoas revoltadas, dentre elas alguns taxistas. Delmo, talvez ainda sob efeito do Soro, é arrancado a força de dentro da ambulância e empurrado com violência para dentro de um carro Hudson, sem placa, que segue até a av. 7 de setembro e some no meio da noite.

#Áudio Drama 

Sequestrado numa esquina e levado em um carro Hudson, ironicamente o mesmo modelo que ele também havia entrado em uma outra esquina há 5 dias. 
O desfecho dessa história você ouvirá no próximo episódio, aqui no Reino do Norte – O Caso Delmo

EXTRA
Eu não poderia encerrar esse episódio sem falar sobre o Soro da verdade e toda mítica que envolve seus efeitos na mente humana. De acordo com o artigo da Super Interessante de novembro de 2012, o primeiro soro da verdade foi aplicado por volta de 1915 quando um obstetra dos Estados Unidos notou que mulheres em trabalho de parto anestesiadas com escopolamina falavam sinceramente sobre vários assuntos. Então, em 1922, ele testou a droga em dois suspeitos de um crime. Eles negaram as acusações e foram inocentados. Simples assim, como se nunca um acusado houvesse se declarado inocente antes. 
Estudos da CIA afirmam que o pentotal sódico, poderiam ser usados para baixar a guarda de uma pessoa, revelando sua capacidade de falar outro idioma, por exemplo. Especula-se que a própria agência já tenha utilizado tais substâncias em interrogatórios. 
Durante a Ditadura Militar no Brasil, o soro foi muito usado como forma de tortura nas prisões. O pentotal sódico era injetado com a intenção de fazer o preso delatar planos e esconderijos. Mesmo com a supervisão de médicos, havia muitos efeitos colaterais, como alucinações, taquicardia, febre alta e convulsões. 
A maioria dos soros da verdade atua no cérebro, inibindo a produção do neurotransmissor acetilcolina. Isso afeta o envio de informações dos neurônios a outras células. A pessoa fica mais desinibida e com a capacidade de julgamento alterada. 
Entretanto, depois de uma exaustiva pesquisa dirigida e publicada pelo doutor Gisli Gudjonsson, do Instituto de Psiquiatria de Londres, concluíram que ditos fármacos não servem para obter a verdade. É verdade que deixam as pessoas mais falantes, mas não faz nenhum efeito em quem não quer contar nada. No estudo, ademais, aponta que existem sérios problemas relativos à confiabilidade da informação obtida durante o procedimento por causa do aumento da fabulação, da fantasia e da sugestão nas pessoas vulneráveis.