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quarta-feira, 29 de julho de 2020

RdN - Contos Ocultos #Capítulo V

Capítulo V

O grito vinha de uma daquelas casas antigas abandonadas a frente, mas qual? A única coisa que dava para identificar era que a voz pertencia a um garoto que deveria ter sua idade. Decidiu se aproximar com cuidado e se constatasse qualquer perigo iria correr e chamar por alguém. Não iria deixar um garoto sofrer algum tipo de abuso ou sabe-se-la-o-quê. Abaixou-se ao lado da fila de carros estacionados à beira da calçada e seguiu em frente com cuidado, fazendo com que os veículos servissem de barreira, parou ao lado de um Fusca branco estacionado em frente a um muro descascado com tábuas soltas no lugar onde seria o portão. Perto do pára-choque traseiro do carro, em cima da calçada, havia uma árvore, o que a ajudava muito espiar escondida sem ser notada.

Sofia ergueu-se lentamente apoiando as mãos no pára-lama, tomando cuidado para não ser percebida, olhou para dentro das ruínas e viu duas pessoas. Uma era um garoto magricela que deveria ter uns 13 ou 14 anos, mirrado, usando um boné e camisa folgada, bermuda jeans e sandálias, carregando uma mochila azul surrada nas costas. Eram sem dúvida, dele os gritos, pois tentava se desvencilhar com todas as forças do único braço que o segurava pela camisa. O dono do braço era se seria possível, um carteiro. Com uniforme, boné, sacola de cartas e tudo mais, o carteiro segurava-o com sua mão esquerda e tinha a direita espalmada sobre o rosto pálido do garoto, que fazia um esforço inútil de se soltar, parecia que apesar de ser magro, o carteiro tinha muita força.

- Vou perguntar mais uma vez. O que foi que você disse a ele?

- Eu já te disse. Eu... Eu juro que não sabia, eu pensei... Pensei que ele ainda...

- Pensou errado, pensou muito errado Malazarte, e pra onde ele foi depois?

- Eu... Eu não sei... Não sei...

- Ah sabe, sabe e vai me contar ou você quer que eu tire todo o ar do seu pulmão?

- Não, não, eu juro, eu não sei... SOCORRO, ELE VAI...

O carteiro aproximou a mão do rosto do garoto que parou de gritar na hora, seus olhos se arregalaram, sua boca ficou entreaberta e seu tom de pele mudou de pálido para roxo. Sofia não podia mais se conter, o garoto ia morrer, aquele carteiro deveria está, de alguma forma impossível, apertando o pescoço do menino.

- ELE VAI MORRER SE VOCÊ NÃO PARAR!

Na mesma hora ela percebeu que cometera um grande erro. Tanto o garoto - que agora já voltava ao tom de pele habitual - como o carteiro, olharam para ela intrigados. Aproveitando o momento de distração o moleque esticou os braços para cima e pulou, encolheu as pernas para cair de cócoras no chão livrando-se da camisa folgada e do homem que a segurava, levantou-se e ia começar a correr quando o carteiro percebeu e agiu. Largando a camisa, ele ergueu a mão espalmada em direção ao fugitivo que já estava há uns três metros de distância.

O garoto caiu de joelhos com as mãos agarrando o pescoço, novamente começou a sufocar. Que diabos era aquilo? Sofia não iria perder tempo tentando entender aquela bruxaria, agarrou uma pedra no chão e puxou o braço para trás mirando a cabeça daquele carteiro-bruxo que agora a olhava prevendo o ataque. Sofia lançou a pedra, mas seu corpo travou, travou no momento em que finalizou o arremesso, tudo ficou silencioso e então ela percebeu que a pedra estava parada no ar, flutuando, ainda tocando a ponta do seu dedo indicador, e não era somente isso que estava parado, seu corpo inteiro estava numa espécie de câimbra, petrificado, ela tentou movimentar os olhos, percebeu que o podia fazer, e encarou o carteiro. 

Ele era muito branco, seu cabelo rebelde insistia em sair do boné por todos os lados, e seus olhos eram cinza, cinza como as nuvens nubladas daquela tarde. O garoto agora estava no chão com as mãos na garganta, quase sucumbindo, o carteiro mais uma vez se aproximou dele e segurou-o dessa vez pelo braço. Se ela tivesse que fazer alguma coisa teria que ser agora, pois ela sabia que ou o garoto morreria por falta de ar ou o carteiro daria o golpe de misericórdia. Concentrou todas as suas forças para uma última tentativa de salvar o moleque e a si mesma.

- Eu... Eu conheço... Você.

As palavras quase inaudíveis saíram de sua boca com muito esforço por entre os dentes surtindo efeito no carteiro, que parou e novamente encarou a menina que tentava se mexer a qualquer custo. O garoto no chão tossiu várias vezes voltando a respirar, mas ainda preso ao homem, levantou, esfregou o peito magro e olhou para Sofia que caiu. Seu corpo, de alguma forma ficara livre daquela câimbra estranha, a pedra rolava ao seu lado, e agora ela lembrava com clareza daquele carteiro-bruxo. Então várias coisas aconteceram rapidamente, o som de um chiado, seguidos de passos correndo e um grito de não. Sofia ergueu a cabeça e viu um pequeno canudo marrom com uma fagulha em uma das pontas quicando no chão e parando ao lado do seu rosto, em seguida um borrão preto passou por ela como uma ventania fazendo o bastão sumir, e o som estrondoso de um trovão que empurrou com violência seu corpo de volta ao chão.

Uma mão segurou seu braço com delicadeza e ajudou-a a ficar de pé.

- Você está bem moça?

Era o carteiro, quer dizer, não era mais o carteiro, era um homem branco com os mesmos cabelos rebeldes e olhos cinza, mas agora ao invés do uniforme de carteiro, ele vestia uma roupa toda preta que parecia pertencer a um gótico.

- Me desculpe, não foi minha intenção machucar você, mas aquele moleque não poderia ter fugido de mim, e a sua pedra, com toda certeza, iria acabar quebrando minha cabeça, apesar dela ser muito dura.

Sofia não sabia se corria pra pedir ajudar ou se seguia seus instintos e partia pra cima daquele homem. Não fez nem uma coisa nem outra, tudo que conseguiu foi continuar falando.

- Por que você tava fazendo aquilo? Você ia acabar matando-o! Ele é só um garoto, nem pode se defender direito.

- Aquele garoto é mais velho que eu e você juntos! Seu nome é Pedro Malazarte, e sinto decepcioná-la mais eu não poderia matá-lo, apesar de ele merecer.

- Então por que você...?

- È minha vez de perguntar. De onde você me conhece?

- Da minha caramboleira, você vive sentado lá, já o vi diversas vezes. – as palavras saíram antes que ela pudesse pensar melhor o que dizer, a resposta pareceu uma loucura, mas naquele momento nada fazia sentido.

O homem franziu as sobrancelhas olhando-a intrigado, como se ela tivesse falado em outro idioma, em seguida olhou para a casa antiga e para avenida de onde ela tinha vindo.

- Nunca estive onde você disse, mas isso não importa tenho que achar aquele moleque. – sua voz saiu como um sussurro.

- Mas o quê aconteceu? Quê barulho foi aquele?

- Malazarte se aproveitou do momento em que me distraí com você, e jogou uma de suas bombinhas de São João para encobrir a fuga. – disse sem dar muita atenção a ela.

- Uma bombinha de São João?

- Não é uma bombinha comum, é um explosivo muito potente, aquele estrondo que derrubou você foi causado por aquela bombinha.

- Aquele barulhão todo por causa de uma bombinha?! Meu Deus! Mas por que ele jogou em mim? Eu tentei salvá-lo?

- Porque Pedro Malazarte só se importa com a própria pele, ele sabia que se jogasse uma bombinha em mim não teria nenhum efeito, mas se jogasse em você eu iria salvá-la e ele poderia fugir, e foi o que ele fez.

- Ah patife! Se um dia eu encontrar com ele, eu... Eu... Eu não sei nem o que vou fazer. Mas como foi que você conseguiu ser tão rápido? E como foi que você o sufocava sem apertar o pescoço dele? E porque você tava fazendo aquilo?

- Você é repórter?

- Não, mas... Não fuja do assunto.

- Isso eu não posso te responder, agora tenho que ir atrás daquele moleque. – e dito isso o rapaz começou a observar o local em volta, como se estivesse decidindo qual caminho tomar.

Sofia estava confusa, parecia que tudo aquilo era um sonho, um furacão parecia ter invadido sua cabeça, como é que aquele homem, apenas colocando sua mão espalmada, sufocava o garoto? Como que ele trocou de roupa tão rápido? E ainda, como conseguiu ser rápido o suficiente para pegar a bombinha e jogá-la para cima? E como que aquele garoto podia ser mais velho que os dois juntos e por que ele não poderia matá-lo? E por que queria fazer isso? Eram muitas as dúvidas, mas de uma coisa ela sabia, ou ela tava ficando maluca ou com toda certeza aquele era o homem que sentava no galho da sua caramboleira.

Olhando a sua volta, Sofia viu que tudo estava muito calmo, o tempo ainda nublava e a fumaça da bombinha se dissipava no ar, na antiga casa onde momentos antes um garoto magricela sufocava, e então ela viu algo que varreu o turbilhão de perguntas de sua cabeça, por algum motivo um amontoado de pano azul no chão chamou sua atenção, era a mochila surrada que Malazarte deixou para trás durante a fuga, de alguma forma aquela mochila lhe despertava um sentimento estranho, seria desejo, ou quem sabe cobiça?

Aproveitando que o homem olhava em varias direções, examinando cada detalhe à sua volta, Sofia se aproximou calma e silenciosamente daquele monte de trapos, com os olhos brilhando sinistramente enquanto caminhava em direção a mochila, ela sabia que dentro havia algo que a surpreenderia, sabia desde o momento que pôs os olhos na mochila, era como se o conteúdo falasse com ela por telepatia. “Estou aqui, venha, venha me pegar”. Seguindo seus impulsos, Sofia se abaixou e esticou a mão direita para pegá-la.

O tempo pareceu ter acelerado, Sofia ouviu o grito de “não” do carteiro-bruxo sendo abafado por um rugido no momento em que seus dedos tocaram a mochila. De repente tudo ficou escuro, um grito de desespero ecoou em seus ouvidos e ela desmaiou.



*****


Dor. Uma dor no abdome somada a uma pressão na sua cabeça e algo segurando suas pernas na altura dos joelhos, indicavam que ela estava apoiada sobre a barriga em cima do ombro de alguém. Sentia seu corpo subir numa velocidade incrível, como se estivesse em um jato, aumentando a pressão em sua cabeça, e depois descer causando aquele frio na espinha. O assovio que o vento gelado fazia e o som de árvores farfalhando a intervalos regulares davam a impressão que ela estava no ombro de uma pessoa que estava pulando de galho em galho. Que idéia absurda, resolveu abrir os olhos para espiar, mas no momento que os abriu tornou a fechá-los com o susto que levou. Não era possível. Ou ela estava sonhando ou estava realmente no ombro de um homem que pulava de um galho a outro a mais de 30 metros do chão, novamente a explosão de perguntas surgiu na sua cabeça: quem era aquele homem? O carteiro-bruxo da caramboleira? Pra onde estava indo? Como ele conseguia fazer aquilo? Será que ele era bruxo mesmo? Quanto tempo será que ficou desacordada? Alguns minutos? Ou horas talvez, pois já era noite. Pensou em gritar ou se mexer, mas novamente decidiu por ficar parada e esperar, até porque uma queda daquela altura a mataria na certa.

Agora que estava mais acordada começava a ouvir muito distante o som dos carros que passavam abaixo deles, estavam em uma estrada e mesmo de olhos fechados percebia a claridade dos postes de iluminação. Será que o bruxo pulava nos postes também? Nessa hora ela teve consciência que sua mão direita estava fechada em volta de alguma coisa, arriscou mais uma espiada rápida e viu que era uma mochila. A mochila! Agora ela se lembrava de tudo com clareza, como foi possuída pelo desejo de tocá-la, o grito do bruxo, o rugido, o medo, o outro grito desesperado e novamente sua mente foi escurecendo e ela desmaiou novamente.


  

*****



Um velho, um velho vinha andando abraçado com um homem negro por uma trilha na mata. O negro estava tombando, vacilando a cada passo, deixando um rastro escuro atrás da dupla. Eles vinham lentamente em sua direção, o velho cochichava alguma coisa para manter o outro acordado, estavam mais próximo e então ficou claro que o rastro era de sangue e o velho era seu avô. Sofia tentou correr para ajudar seu avô, mas não conseguia sair do lugar, então gritou o mais forte que pôde, e novamente nada aconteceu. 

A imagem foi se dissipando e ela começou a ouvir duas pessoas conversando, sentiu que estava deitada confortavelmente sobre uma cama, e que seu braço direito estava esticado para o lado e mergulhado em algum líquido morno, sentia um cheiro forte de ervas, e começou a escutar a conversa entre as duas pessoas. Percebeu que era um homem e uma mulher e que o assunto era tenso.

- Você acha que ela é...?

- Não sei. Talvez possa ser. A forma como ela conseguiu resistir... Tem certeza que ela tá viva?

- Tenho. Ainda não consigo acreditar que o Malazarte fugiu.

- Fugiu sim.

- Eu sei! Mas deixando a mochila pra trás?

- Pois é, acho que tava tão desesperado que esqueceu.

- Pô, você deve ter exagerado pra ele ter fugido assim. Mas então, foi aí que ela...?

- Foi.

Nesse momento Sofia percebeu que sua mão direita não estava mais fechada em volta da mochila, puxou bruscamente o braço direito de dentro da bacia com o líquido morno para ver sua mão. O casal parou de falar, Sofia sentou lentamente na cama, seu corpo estava dolorido, principalmente o abdome, olhou para o casal em pé a sua frente, o homem era o carteiro-bruxo, a mulher era uma jovem índia muito bela com cabelos longos e com roupas pretas iguais a do homem, tinha um bonito sorriso e seus olhos eram cor de chuva. Ela se aproximou da cama e se inclinou pra perto ainda sorrindo.

- Como você está se sentindo?

O seu extinto lhe dizia que deveria sair dali correndo, fugir daqueles malucos, mas a sua razão falou mais alto. Sofia achou que naquele momento o melhor a ser feito era continuar falando.

- Quem é você e onde eu estou?

- Não disse! Ela só responde com pergunta, Naya.

- Ok, me desculpe. Deixa eu recomeçar. – disse muito calmamente ainda sorrindo - Meu nome é Naya, você está em minha casa, foi trazida até aqui por meu amigo, o nome dele é Cauã. Você chegou aqui desacordada sob efeito de uma maldição que havia na mochila que você tocou, eu preparei um “banho” para quebrar o encantamento. – Ela esperou alguns segundos e então perguntou – Você esta se sentindo melhor?

Sofia assimilou cada palavra da mulher, enquanto processava as informações observou o quarto em volta, era de madeira simples, mas muito bem trabalhada, além da cama onde ela estava deitada, havia uma mala grande no canto, vários livros empilhados ao lado de uma poltrona, e uma cadeira que, com toda a certeza, havia sido levada de improviso para o homem.

- Estou. Que horas são?

- Por volta das sete e meia da noite.

- Minha mãe vai me matar! – disse arregalando os olhos e batendo de leve na testa.

- Creio que esse seja o menor dos problemas agora. – disse a jovem.

- É por que você não conhece a fera. – Falou arrumando os cabelos num rabo-de-cavalo.

- Conheço piores, acredite. Mas como você se chama?

- Sofia. - Então ela reparou na bacia com o líquido, ele tinha uma cor negra e sua aparência era viscosa. – O que diabo é isso que meu braço doente tava dentro?

- É o banho do qual lhe falei. Na verdade é um chá de ervas para curar esse tipo de... Digamos problema.

- Ah, esse é o tal banho, erc! Mas por que tem essa cor... Desculpa, como é mesmo seu nome?

- Naya. Não estava dessa cor, o tom inicial era verde cristalino, ficou assim depois que seu braço mergulhou aí dentro.

- Então quer dizer que isso aqui é como se fosse...

- A doença materializada? É, poder ser dizer que sim, mas no seu caso não era doença, era uma maldição.

- Ãh?! Tipo macumba?! – Era visível o pânico em sua voz.

- O quê?! Não, não, isso não! – Percebendo o medo da garota, ela tentou explicar – Você se lembra da mochila? 

Tudo passou como um flash por sua cabeça, e Sofia sentiu medo da bacia com o líquido escuro e se afastou, encolhendo-se um pouco.

- Sim, mas até agora não entendi nada dessa coisa maluca, e nem porque vim parar aqui, o seu amigo aí não quis me dizer nada. 

Naya encarou Cauã com olhar de reprovação.

- Que foi? Não deu tempo pô! – Cauã tentou se explicar.

Sofia já estava ficando de saco cheio daquele papo e resolveu por um ponto final.

- Olha Naya, você está sendo muito simpática e tudo o mais, mas ou você me conta tudo o que está acontecendo de uma forma sensata ou eu me levanto daqui e vou-me embora antes que minha mãe ligue pra Deus e o mundo atrás de mim.

Naya levantou calmamente e sentou na beira da cama encarando Sofia nos olhos, dessa vez ela não estava sorrindo.

- Certo, mas preste muita atenção e não leve a coisa na brincadeira, ok?

- Ok.

- Sofia, você acredita em magia?

- Ãh?! Em quê?!

- Em magia! Você acredita? Sofia ia pergunta se ela estava brincando, ia se levantar e ia embora decidida a esquecer tudo que aconteceu, mas ela sentiu que a mulher não estava tirando sarro da sua cara.

- Sinceramente?

- Sim, sinceramente Sofia, você acredita? – Naya lançou-lhe um olhar que parecia que iria perfurar o crânio.

- Bom sinceramente, eu quero acreditar.

- Ótimo, já é um começo. Veja.

Naya esticou a mão delicadamente em direção a bacia, e então, de alguma forma que Sofia não conseguia explicar e nem entender, o líquido dentro dela se suspendeu e começou a girar tomando a forma de um globo, a rotação foi acelerando e de repente um vapor escuro começou a sair produzindo um som que se assemelhava a um grito, tornando o tom da esfera mais claro, por fim a rotação parou, e o globo, agora transparente, ficou imóvel, como se fosse feito de cristal, lentamente ele desceu e pousou sobre a bacia sem fazer o menor ruído.

- Observe – Naya apontou para a bacia e Sofia se aproximou com cuidado. O líquido estava transparente, limpo, cristalino. Sofia estava embasbacada, não sabia como aquilo que acabara de presenciar era possível. 

- Como, como você fez isso? – a pergunta saiu como um sussurro. 

- Com magia.

- Com magia?! Não tem uma resposta mais lógica pra você me dar? – a irritação voltando a lhe dominar.

- Não Sofia. Porque magia é ilógico, é a essência da existência, magia é à força do espírito da natureza.

- Mas... Mas... Ah! Você está me confundindo mais ainda.

- Ok, ok, partiremos do princípio. – Naya olhou para Cauã a procura de apoio que apenas sacudiu os ombros em resposta - Vejamos, ah muito bem. Há séculos, durante a colonização da Amazônia, uma pajé, feiticeira, ou como você queira chamar...

- Bruxa! – dizendo isso ela percebeu que Cauã emitiu um som que pareceu ser uma risada abafada. 

- Certo, mas o termo correto é pajé, pois bem, onde parei? Ah, sim, uma pajé muito, mas muito poderosa selecionou um grupo de guerreiros para defender e proteger a nossa floresta. Eles foram iniciados em magia e treinados de uma forma inimaginável se tornando os primeiros Guardiões da Selva. Com o passar dos tempos a pajé morreu, e os Guardiões foram incumbidos de treinarem seus sucessores, passando de geração em geração seus conhecimentos e habilidades. Hoje em dia os Guardiões são formados por seis pessoas, eu e Cauã somos duas delas.

Sofia estava digerindo cada palavra, aquilo parecia um sonho, um sonho muito maluco, resolveu então manter a conversa e continuar fazendo perguntas.

- Sim, mas hoje em dia vocês defendem nossa floresta contra o quê?

- Contra todo e qualquer tipo de ameaça que ela sofra, desde exploração, queimadas e tráfico até invasões e etc.

- E como é que ninguém nunca viu vocês fazendo isso?

- Bem, vê, já viram! – disse Cauã – Você nunca ouviu falar em alguma estória fantasiosa do tipo vampiros, lobisomens, alienígenas, fantasmas e etc.? Pois é, mas no geral, nós fazemos de uma forma discreta. Imagina só se as pessoas nos vissem diariamente fazendo o que você acabou de presenciar?

Sofia concordou mentalmente e ficou imaginando sua tia Ana Maura vendo o noticiário da televisão mostrando pessoas vestidas de preto fazendo magia.

- É, seria um caos. – concluiu – As pessoas iam caçar vocês, ou pelo menos tentariam. Tá, mas aonde é que eu entro nessa história toda? Ou foi só um acaso?

- Acasos não existem! As coisas acontecem como tem que acontecer. – disse Cauã encarando-a - Por alguma razão isso tudo aconteceu dessa forma, pois além de lhe salvar e ter perdido o Malazarte, você tocou na maldita mochila e eu tive que te trazer pra cá.

- Ah é! – Sofia percebeu que o rapaz queria encerrar o papo e resolveu ser mais direta – E essa mochila, por que ela me deixou daquele jeito?

- A mochila é um objeto mágico muito poderoso, ninguém sabe ao certo o que ela pode fazer, mas há varias lendas sobre ela, a mais conhecida é que Malazarte enganou o próprio diabo com ela, porém a única coisa que se tem certeza é que somente o dono pode tocá-la. – explicou Naya – O quê você sentiu quando tocou nela?

Sofia lembrou mais uma vez daquela sensação horrível, do rugido, do grito e do escuro.

- Medo. – foi a primeira palavra que lhe veio a cabeça – Bom primeiro eu senti uma atração como se aquela coisa falasse comigo, me chamasse e depois que eu toquei eu senti medo e um pouco de arrependimento, depois tudo ficou escuro e eu acordei aqui.

Naya e Cauã se olharam por alguns segundos que demoraram o suficiente para Sofia sacar que falou algo estranho até para eles, e isso foi a deixa que precisava. Levantou-se de um salto, pegou sua mochila no chão e caminhou em direção a saída do quarto.

- Bom, é melhor eu ir embora, eu não trouxe meu celular e minha mãe deve ta preocupada, sabe como é né...? 

- Cauã vai levar você.

- Não, não precisa. Não que eu não queira que ele vá, mas vocês já fizeram muito por mim, e como ele disse, eu atrapalhei muito os seus... Ãhm... Negócios. Só me diz onde é o ponto de ônibus mais próximo.

- Por aqui não passa ônibus Sofia. E mesmo que passasse levaria mais de um dia, eu acho, para você chegar à sua casa. – disse Naya

- O QUÊ?! Você tá brincando né?! – sabendo que a resposta seria um “não”, ela acrescentou – Onde nós estamos?

- Numa comunidade próxima a cidade de Tefé.

Sofia caiu sentada na cama com os olhos e a boca arregalada, ela já acreditava que era possível depois de tudo que viu e ouviu. Mas como iria voltar pra casa ela não fazia a menor idéia. Percebendo a perplexidade da menina, Naya completou.

- Por isso que Cauã vai levar você.

- Mas como? Pulando daquele jeito? Não, não, não, não. Se for pra ir assim eu não vou, prefiro levar bronca da mam...

- Ououou, calma. Você disse que tem uma caramboleira não foi? – perguntou Cauã

- Foi, mas o que isso tem...?

- Quantos anos ela tem?

- Sei lá, acho que vinte, trinta ou talvez mais. Foi meu avô que plantou, meu pai ainda não era nem nascido, eu acho. Mas pra quê que você quer saber isso?

- Você consegue imaginar ela, se concentrar na sua forma, mentalizar com clareza cada detalhe?

- Consigo até senti o cheiro dela de tanto que já subi no seus galhos, mas...

- Ótimo, então vamos. - Dito isso ele levantou e caminhou em direção a porta.

- Péra lá, da pra me explicar o que vai rolar agora? – Sofia já começava a se irritar com esse cara que nunca explicava nada pra ela.

- É melhor explicar lá fora, venha. – disse Naya, que vendo a menina se levantar e segui-los acrescentou – Você não está esquecendo nada?

- Não. – disse Sofia, apalpando a sua mochila e olhando para baixo.

- Aquilo ali pertence a você – Naya apontou para um bolo de trapos enrolados no chão próximo da cama.

Sofia ficou pálida de medo. A mochila, a mesma mochila que horas antes estava jogada no chão de um terreno baldio. A maldita mochila que a fizera parar ali naquele quarto, com aquelas pessoas, agora era sua

- Não, aquilo não é meu, e eu não quero nem de graça. Tá maluca? Aquilo quase me matou...

- Quase, mas não matou. Era pra ter matado, mas você, de alguma forma resistiu à maldição que ela possuía, portanto, aquele objeto valioso agora é seu, e não lhe pode mais causar mal nenhum. 

- Não, eu não vou arriscar. Esse papo de “aquilo que não nos mata, só nos deixa mais forte” é conversa fiada, vai lá você e pega primeiro, se não acontecer nada eu fico com ela.

- Só quem pode tocá-la agora é você. Ela reconhece você como dona.

Sofia olhou para mochila e não pode deixar de se sentir tentada pelo fato de ter algo que somente ela pudesse tocar.

- Jura que não vai acontecer nada comigo se eu tocar nela?

- Juro.

- Jura?

- Juro.

- Jura mesmo?

- Eu juro Sofia que não vai acontecer nada com você.

- Você jurou três vezes, se estiver mentindo vai quebrar três juramentos de uma só vez.

Sofia se aproximou da mochila, se abaixou, fechou os olhos e esticou a mão. No momento que seus dedos se fecharam envolta da alça, Sofia sentiu apenas um calor morno percorrer seu braço e nada mais.

- Viu, não aconteceu nada moçinha, agora vamos que o apressado já ta nos chamando.

Sofia colocou a mochila de trapos dentro da sua de escola, e caminhou em direção a saída sem prestar atenção aos detalhes da casa, apenas vendo Cauã no jardim.

- O quê pode acontecer se alguém tocar a mochila?

- Fica tranqüila que ninguém vai morrer, até porque a maldição que foi posta nela, você já quebrou. Mas posso te garantir que a pessoa que pegá-la sem sua autorização vai ter uma boa surpresa.

- Tipo, boa - boa? Ou tipo, boa - ruim?

- Digamos que... Interessante. – respondeu dando um sorriso.


RdN - Contos Ocultos #Capítulo IV

Capítulo IV

O despertador tocou em algum lugar do quarto escuro. Uma mão pequena saiu debaixo do amontoado de edredom e travesseiros e tateou a base de um abajur em cima de um pequeno criado-mudo, não achando o causador do barulho a mão escorregou até a alça da primeira gaveta, puxou-a e adentrou a procura do objeto, sentiu alguns lápis, papéis e outras coisas, tinha que encontrar logo aquele treco ou sua cabeça iria explodir. Achou. Pressionou o botão do aparelho para fazê-lo calar, sabia que cinco minutos depois aquela tormenta voltaria acontecer, a mão retornou para baixo das cobertas onde estava quentinho e macio. 

Silêncio. 

Passaram-se apenas alguns segundos e o barulho irrompeu ainda mais alto que na primeira vez. Não era possível! Aquela maldita bugiganga só podia estar quebrada, dessa vez a mão saiu com rapidez e ligou o abajur, pegou o despertador e parou com ele sob o campo de luz da luminária, uma segunda mão abriu uma fresta entre um travesseiro e o colchão revelando um par brilhante de olhinhos castanhos, meio fechados por causa da claridade, tentando focalizar as horas no aparelho. 6h05min. Que coisa! Mal tinha fechado os olhos e se passaram cinco minutos. Agora mais acordada podia ouvir o som da TV ligada vindo da cozinha no andar de baixo, onde sua mãe estava preparando o café, contou até três mentalmente e quando acabou ouviu a frase que tanto odiava.

- Sofia, acorda minha filha, ta na hora, são seis e meia!

Que exagero! Por que ela fazia isso? Será que não percebia que isso era cruel? Antes, toda vez que falava isso seu coração disparava, parecia que ia enfartar, pensava estar atrasada para aula, por isso comprou um despertador, para ela nunca mais enganá-la, mas o lado ruim da historia é que toda vez que o aparelho tocava sua mãe ouvia, por isso guardava-o na gaveta. Teve vontade de descer e falar umas coisas que com certeza na hora surgiriam, mas a preguiça e o sono eram maiores. Lá embaixo ainda se ouvia a voz de sua mãe misturada ao som da TV.

-... Fica até de madrugada fazendo sabe-se-lá-o-quê, dá nisso, sabe que tem que acordar cedo. SOFIA SERÁ QUE EU VOU TER QUE IR AÍ EM CIMA TE TIRAR DA CAMA?

- Pronto, já vou, já vou, JÁ ACORDEI! Ai, que coisa chata!

Sofia se espreguiçou até seus ouvidos zumbirem, sentou na cama e olhou em volta. 

Apesar da pouca claridade dava pra ver que o quarto estava uma zona, tinha roupa espalhada por todos os lugares até na mesa do computador, seus livros, cadernos e desenhos estavam esparramados entre sua cama e a parede onde havia uma janela, essa era a única janela do cômodo e tornou-se sua parte favorita do quarto, através dela dava para avistar sua árvore, um pé de carambola, e a rua da frente de sua casa. Graças a ela, toda vez que ouvia barulho de carro estacionando ou da campainha tocando, conseguia ver quem eram as pessoas que chegavam e isso era muito útil, pois lhe dava tempo de esconder-se das indesejadas como sua tia Ana Maura que sempre vinha com um cordial “Olha como essa menina ta grande” seguido de uns apertões nas bochechas e uns comentários sobre seu peso “Mas ela ta muito magrinha Paulinha, vocês não dão comida pra essa menina não”, e por fim a pergunta se ela já havia arrumado um namorado, como a resposta era um forte “Não!” geralmente dito por seu pai quase que de imediato, o último comentário era sempre “Mas também. Tem que melhorar essa aparência, ela ta muito desleixada, parece àqueles hippies”

Mas, recentemente, aquela janela também tinha algo de especial, principalmente tratando-se de sua árvore. Várias vezes ela jurou ver um homem vestido de preto sentado nos galhos daquela caramboleira observando-a, principalmente quando ia dormir ou no meio da noite quando acordava para beber água ou ir ao banheiro. Era sempre o mesmo cara, branco, magro com os cabelos rebeldes, vestido com uma roupa toda preta coberta por uma espécie de capa ou sobretudo, mas ela sabia que isso era obra da sua imaginação, onde já se viu um homem ficar sentado num galho de uma árvore no meio da noite ainda mais de sobretudo, tudo bem que as vezes a noite era um pouco mais fria que o dia, mas mesmo assim, só um louco para andar em Manaus vestido com um troço daqueles. 

Sofia nunca esqueceu a primeira vez que o viu, foi no ano passado, numa sexta-feira que não tinha aula por que era feriado de finados, ela estava muito triste lembrando-se de sua recente perda, a morte de seu avô. O quarto estava no escuro, chovia bastante, o céu estava negro apesar de serem quatro horas da tarde, o único som que se ouvia era das gotas batendo na janela misturado ao vento forte, ela estava sentada na mesma posição, observando os desenhos que se formavam com as gotas d’água escorrendo pelo vidro ao mesmo tempo em que as lágrimas rolavam pelo seu pequeno rosto. 

Um raio, um raio de tremer a casa inteira caiu na caramboleira ou bem perto, abafando o som de seu, até então, reprimido soluço, clareando o quarto inteiro, e no momento do clarão ela o viu. Sentado no galho, encharcado com os cabelos pingando caindo pelo seu rosto, poderia jurar que ele estava olhando para ela. Não se assustou, ao invés de correr chorando como faria a maioria das garotas, ela esperou pelo próximo raio, para ter certeza que vira aquele homem, e no clarão seguinte não estava mais lá, desde esse dia seu quarto está repleto de desenhos desse sujeito e com o passar do tempo perdeu seu medo, passou a crer que o homem é uma espécie de protetor, um anjo talvez, como naquele filme que gosta tanto onde o anjo se apaixona por uma mulher.

A porta do quarto se escancarou com estrondo, sua mãe estava parada na entrada com a boca entreaberta, preparando-se para começar a esbravejar, mas a única coisa que viu foi a porta do banheiro do quarto da filha se trancando. Sofia era rápida quando queria, no instante que ouviu a maçaneta do quarto girar, saltou da cama para o banheiro e se trancou. Seu micro system estava na prateleira acima do vaso, junto com seus materias de limpeza, ela o colocava ali por que era o melhor local para se ouvir música, dentro do banheiro ela poderia cantar a vontade, e o melhor, não ouviria sua mãe gritar. 

Os segundos que o aparelho de som levou para ler o cd foram uma eternidade, ainda ouviu sua mãe começar a resmungar alguma coisa sobre seu quarto bagunçado e suas roupas jogadas até que a música tocou, era um sucesso da banda Casulo, o volume estava no máximo, e daí que sua mãe estava para quebrar a porta com batidas secas, e daí que se atrasasse alguns minutos, aquela música fazia sua mente relaxar e esquecer dos problemas, ela dançava de baixo do chuveiro e cantava a plenos pulmões.

Passados quinze minutos, Sofia desceu as escadas correndo, já fardada e com a sua velha mochila nas costas, apressou-se em sentar logo na mesa e devorar seu café-da-manhã, pão com ovos, queijo e tucumã e um grande copo de suco de cupuaçu bem adoçado. Sua mãe sabia como lhe agradar. Dando uma mordida no pão olhou para seu pai sentado na cabeceira, já com sua habitual farda militar verde oliva lendo um jornal.

- Bom dia pai, sua benção.

- Deus te abençoe. – disse sem tirar os olhos do jornal – Olha só Ana Paula, mais um barco naufragou vindo pra cá, contando com esse é o segundo só esse mês.

- Terceiro. Hoje de manhã deu no jornal que outro naufragou nesta madrugada próximo de Parintins, estão dizendo que são as tempestades. Desse jeito as coisas não vão melhorar em nada lá na Aurora.

Ana Paula, a mãe de Sofia era turismóloga e dona da Agência de Turismo e Viagens Aurora, já seu pai Frederico era Tenente-Coronel do exército, conhecia quase todos os municípios do interior do estado devido as suas viagens de missões militares, e foi numa dessas viagens que conheceu sua esposa, ela estava liderando uma excursão com um grupo de turistas ao município de Tefé. 

Após terminar o café-da-manhã com rapidez, Sofia lavou as mãos e enquanto escovava os dentes olhou para seu pai.

- É o chenhor que bai me lebar pá aula hoche?

- Não minha filha, eu vou sair mais tarde hoje, sua mãe leva você.

A garota amarrou a cara, guardou a escova dental e saiu para a garagem, sempre preferia que seu pai a deixasse na escola, pois no carro dele ela podia escolher a música que tocava e conversavam com o ar-condicionado desligado e os vidros abaixados, além de calar a boca de suas colegas chatas e invejosas, pois seu pai além de ser um homem bonitão, estava fardado, e isso sempre chamava a atenção delas. Mas no carro da sua mãe, só ouvia o jornal da manhã, calada e sentindo um frio de congelar a ponta do nariz.

Sofia ia olhando pelo retrovisor sua caramboleira ficar para trás, o dia estava nublado e dentro do carro a mesmice. O jornal, o silêncio entre as duas, o vidro fechado e o nariz gelado. Ligou seu novo ipod que ganhou do pai nas férias de junho e colocou sua seleção de músicas para tocar, era o primeiro dia de aula após as férias de junho, na verdade as aulas cessavam na segunda quinzena de maio e voltavam na segunda quinzena de junho, mais os alunos sempre chamavam assim, férias de junho. Ela não estava nada ansiosa com a volta, seu pensamento era ocupado por apenas uma coisa, dentro de exatamente três semanas faria quinze anos. Minha nossa! Quinze anos!

 Pareceu uma eternidade para chegar a essa idade, mas agora que estava próxima não se sentia tão bem, seus pais com certeza iriam querer fazer um grande baile de debutante com recepção, troca de vestido, valsa e toda aquela caretice. Isso a apavorava, não iria pagar esse mico. Uma idéia acabara de lhe ocorrer, pediria para os pais lhe pagarem uma viagem. Uma viagem onde ela poderia escolher o destino, uma viagem aonde ela iria sozinha, sem perturbações, sem chatices, sem regras ridículas e cobranças. 

A idéia fez seu rosto se iluminar, percebeu pelo reflexo do retrovisor que estava sorrindo, e que já deveria estar fazendo isso há algum tempo, sorte que sua mãe não reparou, estava entretida com o jornal, ouvindo uma noticia sobre a atual enchente que já ultrapassava a antiga maior marca que nem reparou na filha. O carro parou num sinal, vários atores caracterizados com roupas de época entregavam papéis para as pessoas nos carros, aqueles papéis eram com certeza panfletos sobre uma peça teatral que, pelo visto deveria ser muito divertida. Sofia abaixou o vidro para apanhar um panfleto de um rapaz muito simpático vestido de bobo-da-corte.

- Fecha esse vidro Sofia. – disse sua mãe em tom severo – Quantas vezes já te falei...

Sua mãe foi interrompida pelo susto que tomou quando viu a cabeça do bobo-da-corte entrar pela janela aberta.

- Bom dia senhora e senhorita! – disse animadamente o ator, sorrindo revelando dentes muito brancos – Vossa majestade, o Rei, as convida para prestigiar a nossa peça...

- Sofia, fecha esse vidro. Por favor, rapaz, com licença. – sua mãe esticou o braço para alcançar o botão de fechar o vidro.

- Desculpe minha senhora só estou fazendo o meu trabalho, se não entregar todos esses panfletos vossa majestade, o Rei, manda me decapitar. – entregando os panfletos para as duas completou – Muito obrigado por ajudar esse pobre bobo ter alguns dias a mais de vida, e, por favor, prestigiem nossa peça, até mesmo a senhora com seu mau humor será bem-vinda.

O ator retirou a cabeça deixando sua mãe com cara de quem não acredita no que ouviu, Sofia tapou o rosto com o panfleto fingindo ler e trancou sua mandíbula com toda força para não soltar uma gargalhada. Essa ela mereceu! A princípio, Sofia pensou que sua mãe iria explodir em berros por causa do vidro aberto, mas enxugando as lágrimas dos olhos viu que ela estava com uma expressão abobada com o comentário do ator e não voltou mais a falar até parar o carro em frente à escola.

- Tchau minha filha, onze e meia no máximo...

- Não mãe, hoje não precisa vim me pegar, tenho um trabalho para fazer com as meninas depois da aula. – mentiu saindo do carro e guardando o panfleto na bolsa.

- E vocês vão fazer esse trabalho na casa de quem?

- A Gente vai fazer aqui na biblioteca mesmo. – mentiu novamente.

- Tem dinheiro pro lanche e pro almoço?

- Hum – rum, tenho.

- Ta bom filha, qualquer coisa me liga. 

 - Ta, tchau mãe. – bateu a porta do carro e segui para mais um monótono dia de aula, agradecendo por uma mentira tão deslavada ter colado. Como é que havia trabalho em grupo para fazer se era o primeiro dia de aula depois das férias de junho?

Durante toda aula Sofia ficava consultando o panfleto com os dias e horários da peça, havia um espetáculo às duas da tarde daquele mesmo dia, resolveu que iria assistir sozinha, não convidaria ninguém, até por que não tinha ninguém para convidar, Sofia era uma adolescente diferente, não tinha muitos amigos e não gostava de bater papo sobre banalidades. Decidiu que assim que saísse da escola procuraria alguma lanchonete para almoçar e caminharia lentamente até o Largo São Sebastião.

O último tempo de aula era sua matéria preferida, filosofia. O professor era um frei com uma longa barba, baixinho, gordo e careca de meia idade muito inteligente, seu nome era Antônio, frei Antônio, o melhor amigo de Sofia desde sua infância. O frei era o único que escutava suas opiniões e idéias, o único que debatia sobre questões inteligentes com ela, e o mais importante, era o único que realmente a conhecia. Por isso Sofia se destacava em suas aulas e também por isso os minutos passavam depressa, quando se deu conta a aula já havia acabado. Ela nem havia prestado atenção ao assunto, mas ouviu alguma coisa sobre Demócrito e materialismo. Ansiosa, saiu com velocidade mal se despedindo de frei Antônio, sabia que se parasse para conversar com o professor ele acabaria arrancando a verdade sobre o que ela iria fazer depois da aula. Não queria que o frei soubesse que ela havia mentido para sua mãe.

Frei Antônio já há salvou várias vezes de enrascadas, a pior dela foi há mais de um ano, quando seu avô morreu. Pensou que o mundo ia acabar não queria acreditar na noticia que seu pai, com a voz chorosa e lágrimas nos olhos, lhe contava. Não podia ser verdade. Um mescla de revolta, medo e tristeza a invadiu. Um trovão, e depois o som de gotas caindo a cada lágrima que escorria. Não era verdade, seu avô estava lá no mesmo bar, conversando com os amigos e sorrindo ao ver sua Princesinha, como a chamava, chegar para lhe abraçar. 

Sofia saiu correndo pela rua não dando ouvidos a gritaria de seus pais, só queria correr, sentindo a chuva tocar seu corpo e o vento forte fazer seus cabelos esvoaçarem, correr, correr era tudo que queria, não sabia aonde ia, mas seus pés a levaram até a igreja de frei Antônio, há quinze quarteirões dali. O frei acordou no meio da noite com pancadas na porta da igreja. Quem seria há essa hora? Encontrou Sofia sentada na escada de costas para a entrada, ensopada e aos prantos. Ligou para os pais dela somente três horas depois, quando já havia acalmado, enxugado, conversado e confortado a sua pequena amiga com uma xícara de chá morno. Sabia que os pais dela deveriam estar preocupados, pra não dizer desesperados, mas fez isso somente por que a garota pediu e por que gostava muito dela. Com certeza ela deu um grande susto em seus pais, mas era melhor que ela extravasasse do que ficar contendo aquilo guardado, destruindo-a lentamente por dentro, transformando-a numa pessoa amarga e seca.

O tempo parecia querer se fechar ainda mais, nuvens cinzentas cobriam quase todo o céu, se não chovesse, estaria perfeito para sua caminhada até ao Largo, sem o sol queimando sua cabeça, sem aquele calor insuportável de sua cidade. Saindo da escola, atravessou a rua e parou no conhecido lanche dos alunos, O Estudantil. 

Seu almoço seria um sanduíche natural e um suco de cupuaçu com leite, fez o pedido e enquanto esperava ficou imaginando como seria a peça, lembrou-se também como fazia tempo que não ia ao Teatro Amazonas, ele juntamente com o Largo e a Igreja de São Sebastião era o seu ponto turístico preferido, para ela, ali era um lugar mágico, pois fazia qualquer pessoa lembrar-se de uma era de ouro, um tempo que não volta mais, uma época encantada.

Comeu o sanduíche em dois minutos e virou o copo do delicioso suco de uma vez, ajeitou a mochila nas costas e seguiu em frente sem falar com ninguém, já havia traçado o melhor caminho mentalmente, subiria uma avenida por dois ou três quarteirões e depois viraria à direita, cortando caminho por uma rua com casas antigas e sem movimentação que hoje só servia de estacionamento, ponto de táxis e hotéis baratos. 

O tempo continuava completamente nublado e começava a esfriar um pouco tornando o clima ainda mais confortável para um passeio. Na esquina da avenida em que começava a rua pela qual cortaria caminho, Sofia se abaixou para amarrar os cadarços, demorou alguns minutos ajeitando os cordões, pois de alguma forma eles deram um nó, e foi aí nesse momento que tudo começou. 

Talvez se nada disso tivesse acontecido, talvez se ela não abaixasse o vidro para receber um panfleto, talvez se ela não parasse e nesses mesmos minutos em que passou desatando um nó de cadarço ela estivesse caminhando em direção ao Largo, jamais iria presenciar algo que mudaria para sempre sua vida, algo que somente ela, sozinha naquela rua, ouviu. 

Um grito, um grito pedindo por socorro, um grito de fazer todos os seus pêlos se eriçarem e aquela comichão chamada curiosidade crescer dentro de seu corpo.