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segunda-feira, 20 de julho de 2020

RdN - Contos Ocultos #Capítulo III

Capítulo III

Toda aldeia Jaci estava se preparando para o ritual que aconteceria logo mais. Esse era o último dia de lua cheia do mês, e isso significava somente uma coisa, festa. Todos os meses a tribo realizava um ritual para a formosa deusa Jaci, a Lua, Rainha da Noite que traz suavidade e encanto para a vida dos homens. Esse ritual era dividido em três partes, o primeiro ocorria nos três primeiros dias da fase da lua cheia, que consistia em agradecimentos pela boa colheita, prosperidade e riqueza da tribo. A segunda parte por sua vez, ocorria no 4º 5º e 6º dia e consistia em pedir proteção, riqueza, boa colheita, e prosperidade para o próximo mês, por fim, a terceira e última parte ocorria no 7º e último dia de lua cheia, no dia de maior força da deusa Jaci, esse dia era realizada uma grande festa de oferenda a deusa. O cacique tinha um papel muito importante nos dias de ritual, era ele o responsável pelas palavras de agradecimento, pelos pedidos da tribo, e pelas oferendas a Rainha da Noite. Na primeira parte do ritual o cacique tomava banho de folhas de ervas da floresta para purificar seu corpo e espírito, usava um cocar de plumagem branca assim como sua túnica. Na segunda parte, o cacique era obrigado a ficar de jejum até a hora do ritual, seu corpo era defumado com uma fumaça produzida por ervas coletadas pelo pajé, usava apenas túnica preta, na última parte, o cacique usava um cocar grande de plumagem colorida assim como sua túnica, seu corpo era untado com óleos da mata, e antes do pôr-do-sol, fumava um cachimbo com ervas que purificariam seu corpo e trariam a felicidade de Aruanã, o deus da alegria, para seu espírito.

E era assim que Ajuricaba estava, quando avistou os guardiões saindo magicamente do tronco da mangueira, o cacique já havia presenciado essa cena antes, mas sempre era espantoso ver aqueles homens vestidos de preto saírem de dentro da casca da árvore, o primeiro a sair foi seu amigo Cauã a quem chamava de Abaguyrá que significa índio-pássaro, o segundo foi um homem assustado que assim que saiu acendeu um cigarro, o terceiro a sair foi uma índia muito bela de cabelos longos, em seguida saiu um homem com olhar frio e detalhista seguido de um rapaz de rabo-de-cavalo e brinco, por final um homem negro de chapéu e bengala, esse último tinha uma postura altiva e elegante, Ajuricaba sabia quem era já haviam se visto antes, poucas vezes é verdade, mas cada encontro havia sido marcante. O cacique estava sentado em cima de uma grande pedra, usava uma túnica trançada nas cores vermelha amarela, verde, azul e branca, seu corpo brilhava ao pôr-do-sol devido ao óleo que fora untado, fumava um longo cachimbo que soltava uma fumaça leve e suave.

Ajuricaba deu uma longa tragada no cachimbo e pousou-o cuidadosamente ao seu lado, aguardou a aproximação dos recém-chegados, e soltou à fumaça.

- Bem vindos Guardiões da Selva, o que vos trás a nossa aldeia? Pois acredito que não seja para saudar nossa deusa Jaci, visto que todos já foram convidados inúmeras vezes e nunca nos presentearam com vossa presença.

Raoni se adiantou, seu olhar parou por alguns segundos no cachimbo e depois se voltou para o cacique.

- Viemos aqui com o único intuito de lhe pedir que nos retribua um favor. Queremos que nos leve até a Samaúma, e que nos deixe falar com o espírito encarnado da velha Pajé.

Ajuricaba ergueu-se e desceu da pedra, parando a poucos metros de Raoni.

- Eu devo favor apenas a uma pessoa dentre vós, se tiver que levar alguém até a Samaúma, é claro se essa for sua vontade de coração, então será essa pessoa. Caso contrário, podem se retirar.

Cauã, percebendo a situação de confronto entre os dois, tratou de tentar amenizar.

- Ei, calma lá Ajuricaba, me leve até a Samaúma então, o resto do pessoal vai ficar aguardando eu retornar ok?

O cacique concordou sem tirar os olhos de Raoni, virou de costas e começou a caminhar em direção a floresta, parando ao ouvir o som da voz do Negro.

- Quanto aos outros eu até entendo, mas você sabe que não pode me impedir de falar com a Samaúma, não sabe Ajuricaba?

Ajuricaba não se virou nem respondeu, ficou parado por algum tempo e depois continuou a caminhar com seus passos rápidos, os guardiões o seguiram silenciosamente mata adentro, andaram por uma trilha durante trinta minutos até o cacique sair repentinamente do caminho e virar a direita seguindo pela selva fechada por mais uns vinte minutos, os guardiões estavam ficando entediados, pois sabiam que se usassem suas habilidades chegariam ao local em questão de segundos, pararam em frente ao um rochedo grande com uma pequena cavidade na base em forma de arco a meio metro do chão, o buraco era coberto por uma cortina de cipós e limo.

- É aqui. Daqui em diante somente vocês dois podem seguir, o resto aguarda aqui comigo até vocês voltarem.

- Aonde isso nos leva Ajuricaba?

- Os levará adiante Abaguyrá, aonde vocês querem chegar, adiante.

Os dois trocaram olhares entre si e depois com o restante do grupo, entenderam que estava tudo bem e que deveriam permanecer ali em silêncio, apenas aguardando o retorno deles, Raoni fez sinal para Cauã ir à frente, o rapaz adiantou-se, e se abaixou até a entrada da cavidade, o local era úmido e escuro, Cauã colocou os pés para dentro e sentiu que a cavidade se inclinava para baixo, era liso, deixou o corpo escorregar para dentro e deslizou descendo rapidamente, o local era frio, o vento gelado passava por seu rosto e uma sensação claustrofóbica começava a crescer, desceu por uns vinte segundos até chegar a saída, o fim do túnel era a três metros do chão, Cauã caiu em pé, dois segundos depois foi a vez de Raoni. O lugar era maravilhoso, estavam cercados por uma parede rochosa de mais de cem metros, a parede ia se fechando em arco até que no ponto de encontro escorria uma cachoeira que caía em um pequeno lago de água cristalina, o lugar inteiro era coberto de uma rica vegetação, e o único som que se ouvia era o da queda d’água no lago. Estava escuro, mas ao brilho das estrelas dava para ver a imensa sombra da árvore, do lado esquerdo da cachoeira, próximo a margem do lago estava a Samaúma, um colosso no meio daquela paisagem, ainda na escuridão devido à ausência de luz.

Raoni olhou para o céu e admirou as estrelas.

- A noite está bonita, falta pouco para a lua nascer.

Cauã ficou calado, admirando as estrelas e esperando o nascimento da lua, pensou ter visto algo se mexer na parede acima deles, mas se certificou de que era apenas reflexo das águas do lago, demorou algum tempo olhando as ondas no lago provocadas pela queda da cachoeira e então viu um grande reflexo branco perolado surgindo nas águas, olhou subitamente para cima e viu os primeiros raios de lua tocando o solo do local.

- Está na hora, vai já acontecer! – disse Raoni se aproximando um pouco mais da árvore mantendo o olhar fixo. No momento que os primeiros raios de lua tocaram a copa da Samaúma seus galhos reagiram, alongaram-se em direção a fonte de luz e como se uma pequena estrela caísse do céu, um brilho pequeno desceu até os galhos e sumiu em suas folhagens, no segundo seguinte o tronco estremeceu e alguns pedaços de sua casca caíram, modelando um rosto humano, como se estivesse sendo esculpido.

Cauã estava paralisado, deslumbrado com o que seus olhos presenciavam, era magnífico, ouvia uma musica vinda de algum lugar, depois descobria que era de toda parte, das águas, das folhas, dos ventos, do luar e da terra, era uma melodia que acalmava seu coração, que dava paz ao seu espírito, queria ouvir aquela música para sempre, jamais esqueceria o som daquela melodia. O som parou no momento que o rosto, agora já bem definido, abriu os olhos verdes brilhantes, era a única coisa que poderia diferenciar o espírito de uma escultura na casca da árvore, os olhos fitaram Cauã e Raoni parados a sua frente.

- Cheguem mais meus filhos, cheguem mais. – sua voz era suave como a canção que Cauã ouvira há pouco tempo – Deixa eu dar uma boa olhada em vocês. Ah, vejam só, meu velho amigo Raoni, há quanto tempo, soube que você recebeu o título de Mestre da Selva após minha morte. Espero que esteja honrando esse título meu caro.

- Estou. Fique despreocupada Pajé.

- Despreocupada, eu? Eu não estou preocupada, ao contrário de você eu não tenho preocupações. Vejo em seus olhos que algo perturba seu coração, o quê tanto incomoda você Raoni?

- Vou ser direto, pois nosso tempo é curto. O quê a matinta queria com você?

- Como vou saber! Sou um Oráculo não uma deusa.

- Você é a Oráculo mais poderoso que existe, sei que você pode me responder isso.

- Você não mudou nada, continua sabendo como agradar as pessoas, mas também continua fazendo perguntas das quais a resposta você já sabe, Mestre da Selva. A matinta apenas obedece às ordens de alguém que ainda está oculto diante da guerra que não tardará a acontecer, e é com essa pessoa que você deveria se preocupar, pois as intenções dessa pessoa oculta são as piores possíveis.

- Quem é essa pessoa? Que intenções ela tem? – Cauã perguntou por impulso

- Ora, ora, ora... Vejo que temos um pupilo. Você já foi iniciado meu filho?

- Sim Pajé. – respondeu Cauã tentando esconder seu rosto com seus cabelos bagunçados.

- Aproxime-se meu filho, deixe-me enxergar você.

Cauã se aproximou da Samaúma erguendo a cabeça, os raios de lua tocaram seu rosto revelando um guardião assustado com o fato de falar com uma árvore. Os olhos verdes avistaram os cinzas de Cauã, e o rapaz sentiu que aqueles olhos penetravam seu corpo, chegando até seu espírito, e a canção fez-se ouvir novamente, aquela melodia suave que acalmava o coração de qualquer fera da floresta.

- Vejo um poder impressionante rapaz, um poder com o qual jamais sonhei em toda minha existência, também vejo determinação, e uma pitada de predestinação. Sua empreitada será difícil meu jovem, pois você terá a responsabilidade de encontrar aquilo que irá por fim a guerra, não será fácil encontrar, mais quando isso acontecer você terá que fazer uma escolha entre aquilo que é o certo a fazer e aquilo que você quer fazer. Mente e coração, razão e emoção entrando em conflito uma vez mais.

- Mas o que é aquilo que irá por fim a guerra?

- O Equilíbrio. Tudo no mundo tem seu ponto de equilíbrio, principalmente o bem e o mal. A época em que vivemos está se tornando um caos devido às forças das trevas terem adquirido cada vez mais adeptos, isso causou um desequilíbrio na nossa mãe natureza, na existência, nossa floresta está comprometida até a chegada do Equilíbrio, por isso vocês Guardiões, terão a difícil tarefa de assegurar a paz até sua chegada.

- Mas como irei achar esse tal Equilíbrio?

- Uma jovem irá ajudá-lo, uma jovem ainda não nascida e sem talento algum para mágica ajudará você a concluir sua missão.

- Se ela ainda nem nasceu como vou encontrá-la? – Cauã começava a se desesperar com toda aquela história.

- Acalme-se rapaz, ela encontrará você, por sinal ela nascerá dentro de alguns minutos e sua vida já corre perigo desde esse momento.

- Como assim? Por que a vida de uma criança inocente já está ameaçada se ela nem nasceu, ainda?

- Isso eu não posso dizer meu filho, o destino é um rio, e nem mesmo eu posso interferir no curso de suas águas. Não me coloco do lado do bem ou do mal, apenas tento manter a paz na floresta. Falei aquilo que era necessário falar, e você entendeu aquilo que era possível entender. Agora meus filhos, tenho que partir, pois sinto que meu tempo já está acabando.

- Uma última pergunta Pajé, se me permitir é claro. – disse Cauã tentando fazer o Oráculo falar um pouco mais.

- Diga meu filho.

- Quem é a pessoa que se mantém oculta e quais suas intenções?

- Você já havia feito essa pergunta antes. A identidade da pessoa não posso lhes revelar, mais acredito que suas intenções são as piores possíveis, e se ela tiver êxito, não só os guardiões e a floresta correrão perigo, mas o mundo inteiro estará ameaçado pelo maior terror que já se viu antes.

Nesse instante, uma grande sombra cobriu todo o local, fazendo com que ele ficasse ainda mais escuro. A voz se calou, a árvore já não parecia ter mais vida, seus galhos voltaram ao normal, assim como seu tronco. A lua havia sumido do campo de visão do lago e o espírito da velha Pajé deixou a Samaúma, a melodia cessou e agora o som da queda d’água se fazia mais alto.

- Vamos Cauã, não há mais nada para fazermos aqui.

Cauã pareceu despertar de um transe e concordou com um balanço de cabeça, os dois tomaram impulso e saltaram com uma velocidade incrível para cima do paredão de rocha que os cercavam, do alto avistaram o grupo de cinco pessoas abaixo deles há uma distancia bem menor da qual haviam subido Desceram num outro salto, mas dessa vez lento, suave, caíram silenciosos, sem produzir som algum, ao lado do grupo. Todos se olharam, Cauã viu os rostos curiosos de Naya, Ka’á e Bira (fumando) e Max, mas antes que falasse qualquer coisa o som da voz de Raoni ecoou pela mata.

- Obrigado Cacique, que Jaci prospere sua tribo e que suas colheitas sejam fartas, se precisar de qualquer coisa ou se perceber algo estranho acontecendo não hesite em nos procurar.

- Agora vão, não preciso guiá-los até a saída, sei que vocês podem fazer sua própria mágica e sumir daqui pelos troncos das árvores. Tenho que ir, o ritual do sétimo dia está prestes a começar. – e virando-se para Cauã disse – Abaguyrá, você é bem-vindo em nossa festa hoje, será uma honra se puder prestigiar nosso ritual, várias pessoas ainda não tiveram a chance e querem lhe agradecer por ter salvado a nossa tribo dos demônios.

- Certamente será um prazer, mas se meus irmãos não puderem ir comigo, então infelizmente eu não tenho motivo e vontade para festejar Ajuricaba, sinto muito!

O Cacique encarou-o sem expressar reação, observou os demais a sua volta e voltou o olhar para Cauã.

- Você é um homem valoroso Abaguyrá, seu chefe tem sorte em ter você como guerreiro. Hoje é dia de festa e a alegria de Aruanã se faz presente em meu espírito, venham são todos meus convidados, provarão da melhor comida, beberão da melhor bebida e festejarão com meu povo.

O rapaz virou-se e viu os rostos sorridentes dos demais, até mesmo Max e Raoni esboçaram um sorriso de canto, em seguida naquele gesto seu, Cauã passou as mãos no cabelo embaraçado e puxou a gola da capa para frente, com um sorriso no rosto seguiu Ajuricaba. Rumavam agora para a festa, surgiu um som, um som de tambores e cantoria que aumentava a cada passo, varrendo da mente de Cauã toda a recente preocupação da conversa com o Oráculo, fazendo sumir o eco das palavras “não só os Guardiões e a floresta correrão perigo, mas o mundo inteiro estará ameaçado pelo maior terror que já se viu antes”, o que seria “o maior terror que já se viu antes”? Pensaria nisso depois, agora queria se divertir. O som era cada vez mais alto, abafando seus pensamentos, seus passos e de seus amigos, o clarão a frente encandeava sua visão aguçada indicando que havia uma grande fogueira, olhando em volta percebeu que os outros assim como ele, também estavam encantados com a festa. Por conta disso nenhum deles, nem mesmo Ajuricaba que estava acostumado com o ritual, percebeu que acima de suas cabeças, próximo a copa das árvores, voava um grande pássaro branco, um pássaro imenso que se distanciava descrevendo círculos no céu e que há pouco tempo estava escondido na parede de um grande rochedo próximo de um lago, ouvindo sorrateiramente a conversa entre duas pessoas e uma árvore.

Há quilômetros dali, o primeiro choro de uma criança ecoava dentro de uma maternidade, um choro de uma menina saudável e linda que acabara de nascer, trazendo uma felicidade indescritível para sua mãe exausta, com rosto suado e lágrimas nos olhos e um pai tonto, por algumas doses de uísque para se acalmar. O casal mais feliz do planeta naquele momento, feliz pela recém chegada de sua filha, feliz por formarem uma família. O pai acompanhado de algumas poucas pessoas olhava-a com carinho pelo vidro do berçário, somente sua filhinha estava ali, toda acomodada e aquecida. Era o centro das atenções de todos os presentes na maternidade, funcionários, parentes e amigos do casal. O casal mais feliz do mundo! Eles só não sabiam que aquela criança estava predestinada a salvar o mesmo mundo.


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