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domingo, 19 de julho de 2020

RdN - Contos Ocultos #Capítulo II

Capítulo II

O casebre era quatro vezes maior do que aparentava, o soalho era de uma madeira macia e brilhosa, na parede do lado esquerdo havia um grande mapa da floresta, nele vários pontos marcados de cores diferentes moviam-se constantemente pelo mapa e símbolos estranhos que brilhavam em intensidades diferentes. A parede oposta estava repleta de prateleiras, a maior parte com diversos livros, pequenas estatuetas verdes em forma de animais que emitiam uma luz bruxuleante, esferas de vidro que ficavam suspensas no ar girando e um número considerável de caixas artesanais de madeira, com inscrições diferentes, incumbidas de guardar algum conteúdo. O fundo do casebre era ocupado apenas por uma porta dupla de madeira de uma cor natural da sua matéria-prima, nela não havia fechadura ou qualquer outro tipo de tranca. Uma grande mesa retangular ocupava o centro, ao seu redor havia uma dúzia de poltronas estrategicamente espalhadas, o local era iluminado magicamente e tinha um forte cheiro de ervas.

Cauã adentrou o local e viu os rostos familiares de seus três amigos, Max, Ka’á e Naya. O primeiro era um homem forte, de pele branca e cabelos muito bem cortados, tinha olhos amendoados e um belo rosto, lembrava muito um executivo pela postura que exercia, estava sentado em uma das poltronas observando um pequeno show de magia feito por Ka’á, esse era o oposto de Max, tinha os cabelos compridos amarrados num rabo-de-cavalo, olhos castanhos, era um moreno de altura média, usava brincos e um colar muito bonito de jadeítas. A principal espectadora do show era Naya, uma índia muito bela, de pele morena e olhos cinza cor de chuva, usava seus lindos cabelos compridos soltos com uma pequena franja, ela divertia-se, aplaudindo muito ao fim de cada apresentação. Assim que perceberam a entrada do amigo, os três imediatamente abriram largos sorrisos, Ka’á encerrou seu show e Naya correu ao seu encontro, mas parou no meio do caminho ao ver Bira entrar seguido por outra pessoa. No lugar onde estaria o velho achava-se um homem, alto de pele negra, seus olhos eram os mesmos do velho, mas no lugar do balaio de palha, segurava agora uma bengala. Assim como os demais, também usava uma capa negra, diferente somente no chapéu. Foi exatamente esse homem impávido que provocou a repentina freada em Naya e a mudança de postura dos outros, que rapidamente fizeram uma reverência e disseram em coro:

- Mestre!

O homem não respondeu, apenas olhou para cada um dos três, e depois para o local em volta como se estivesse analisando algo que somente ele conseguia enxergar, em seguida passou a mão espalmada lentamente pelo local onde seria a fechadura da porta que acabara de entrar, ouviu - se um som metálico como de um cadeado sendo trancado que foi interrompido pela voz do homem:

- Bom dia meus irmãos! - em seguida foi sentar-se confortavelmente em uma das poltronas, mas no caminho deu uma olhadela para Bira que tinha aproveitado o momento para se enroscar numa poltrona e acender um cigarro, mas logo que se deu conta da mancada, fez o fumo sumir novamente com uma estalada de dedos e tentou disfarçar ajeitando-se no assento e olhando para o lado.

- Pelo que vejo estão todos bem, e muito felizes com a presença de nosso querido Cauã. Alguém que até mesmo eu, dias atrás, julguei estar morto. Hoje nós iremos discutir um assunto de extrema importância para nosso futuro, mas antes deixemos que ele nos conte sua façanha, pois ela é o início de um grande problema que estamos prestes a encarar. Então rapaz, não nos faça perder mais tempo, conte como foi que você fez o que dizem ter feito e como saiu vivo de lá.

Cauã andou pela sala parando em frente ao mapa da parede, então num gesto só seu, passou as mãos no cabelo desarrumado e puxou a gola da capa para frente.

- Bom, antes de começar a narrar o que aconteceu quero deixar bem claro que a maior parte do meu sucesso está ligada a mais pura sorte...

- Sorte não existe meu caro - o negro interrompeu - a existência da sorte anula a justiça, você sabe disso.

- Bem, já que o Mestre não quer que eu seja modesto - disse corando levemente - devo admitir que minha capacidade surpreendeu-me muito e fico satisfeito da Existência ter me posto à prova, pois somente assim conseguir perceber o quanto evoluí com o treinamento. Bom, há dois meses, Ajuricaba, o cacique da tribo Jaci veio me pedir ajuda para expulsar uma manada de mapinguaris que estava atacando o seu povo durante as caçadas. Como vocês sabem, os mapinguaris dificilmente agem sobre vontade própria, então pensávamos que talvez uma caipora estivesse por trás dos ataques. Primeiramente fomos consultar Pangar, um dos chefes dos curupiras, que nos garantiu que as caiporas ainda não quebraram o pacto que fizeram com eles, e que mesmo assim elas estão sendo muito bem vigiada, com isso a única solução era encontrar um dos bichos e fazer ele nos levar até o bando, onde com certeza estaria o cérebro por trás de tudo.

- Mas como vocês fizeram para seguir um mapinguari? - quis saber Naya.

- Armamos uma tocaia para atrair o animal, colocamos uma índia com seu filho recém-nascido no meio da mata. Ajuricaba, camuflado, estava com seu arco preparado para disparar ao menor sinal, eu estava na copa de uma seringueira. Em menos de cinco minutos o choro da criança atraiu o mapinguari, era adulto, tinha cerca de 2m, com a pele muito escamosa de um tom amarelado coberto por uma fina camada de pêlo, sua cabeça pequenina havia um único olho, grande de cor amarela, em suas mãos havia garras capazes de cortar uma árvore em um só golpe, os pés eram muito flexíveis, e sua boca imensa terminava na barriga, com quatro carreiras de dentes muito sujos e quebrados, uma língua preta ficava lambendo constantemente os seus contornos. Ver a criatura de perto era muito assustador, a índia se apavorou e quase pôs tudo a perder, Ajuricaba teve muito autocontrole, não se precipitou e esperou o momento e a distância certa para disparar, o mapinguari virou-se na direção do cacique e sentiu o cheiro do local com a língua como se percebesse a emboscada, e numa fração de segundos o bicho soltou um urro de dor e saiu correndo com uma flecha pendurada na língua preta...

- E como foi que vocês fizeram para segui-lo? – perguntou Ka’á

- Ajuricaba ficou para escoltar a índia com segurança até a aldeia, para o caso de haver outros por perto e eu fui atrás dele...

- Sozinho? Mas como? – interveio Bira

- Saltando pelas copas das árvores ora, de que maneira você queria que eu seguisse um...

- SALTANDO? - dessa vez a pergunta foi feita em coro pelas vozes de Bira, Max, Naya e Ka’á

- Mas Cauã, é impossível seguir um mapinguari apenas saltando, ainda mais dentro da mata, você teria que voar praticamente, eles alcançam uma velocidade muito alta, sem contar nas manobras que fazem e os atalhos que eles conhecem – comentou Max - nós guardiões, mal conseguimos vê-los.

- Confesso que não foi nada fácil - respondeu Cauã - a velocidade deles é realmente incrível, mas o pior foi às armadilhas que eles fazem próximo do local onde a manada se esconde, em alta velocidade quase não dá para desviar, escapei de duas por sorte, quer dizer, por pouco! Então depois de segui-lo por uns minutos cheguei ao local, era uma antiga maloca abandonada, consegui fazer a criatura pensar que tinha me despistado e fiquei observando a movimentação. Haviam cerca de cem mapinguaris ao redor da maloca, e vendo o recém chegado com uma flecha na língua fizeram um grande estardalhaço, uns urravam e cutucavam os que estavam próximos apontando para a língua, outros corriam para longe como se o ferimento fosse contagioso, outros ainda queriam arrancar a flecha de qualquer maneira, e isso já estava começando a gerar confusão, até que um deles apontou para o céu, e todos pararam para ver um imenso pássaro branco que voava em círculos acima deles.

- O matinta – Bira disse levantando-se de um salto.

- Exatamente - continuou Cauã - Mergulhou num vôo rasante e entrou na maloca, seguido pelos mapinguaris que ainda urravam muito. Saltei com leveza para cima da maloca e abri uma brecha entre as palhas para ver o que ia acontecer, quando olhei o matinta já havia se transformado, estava no centro do local, na sua forma habitual de velha corcunda coberta de trapos, com uma grande bolsa de retalhos esfarrapada. Ela levantou a mão espalmada, e imediatamente a barulheira cessou.

- Pelo menos alguém consegue os fazer calarem a boca – comentou Ka’á

- Deixe as piadas para depois Ka’á – advertiu o negro – continue rapaz.

- Todos ficaram muito quietos, como se tivessem com medo, e acho que realmente estavam, a velha abaixou a mão e tirou algo da bolsa que não pude ver, mas depois concluí que era tabaco, ela enrolou um cigarro, acendeu e deu uma longa tragada -  Cauã mergulhou na lembrança daquela tarde lembrando-se de cada detalhe, e calmamente começou a narrar o fato com muita descrição -  e então disse soltando a fumaça.

- Algum verme aqui, já conseguiu localizá-la? – todos os mapinguaris continuaram em silêncio. A velha olhava para cada um dos bichos com um olhar de puro desprezo – Já se passaram seis luas, seis, e nenhum de vocês conseguiu localizar a Samaúma, seus inúteis. – e falando isso ela reparou na flecha que havia transpassado a língua do animal, sua expressão mudou. Ela se aproximou do bicho com um olhar sereno, segurou a flecha com muita delicadeza, como se fosse uma mãe que cuida de um espinho no pé do filho, em seguida deu um puxão tão forte que quase rasga a língua do animal ao meio, o mapinguari urrou tão alto que estremeceu a maloca, o grito ecoou pela mata, eu quase me desequilibrei e meu braço passou pela brecha da palha derrubando alguns fiapos no grupo embaixo. Consegui me recompor no momento em que a velha olhou para cima ainda com a flecha na mão, ela voltou-se dizendo para a criatura que ainda urrava e sangrava bastante:

- O que é isso?

- Érrr umarr frrrecharrr! – grunhiu outro mapinguari atrás da velha

Ela virou-se para o autor da resposta – Verdade? Você acha que eu ainda não havia notado seu estúpido! Veja as penas – levantou a flecha na altura do único olho do animal - As cores indicam que essa flecha é da tribo Jaci e a quantidade significa que pertence ao cacique Ajuricaba. O que eu quero saber, seu idiota, É COMO ELA VEIO PARAR AQUI NA LINGUA DELE?  - sem que o bicho pudesse sequer pensar em se esquivar ela cravou a flecha no seu enorme olho amarelo. Ao invés de urrar ou se debater o mapinguari ficou imóvel, petrificado, do seu olho começou a escorrer um liquido viscoso escuro, e seu corpo começou a se desfazer, como se estivesse virando cinzas que na verdade eram escamas e pelos. A manada inteira silenciou, dava pra sentir que eles, por mais irracionais que fossem estavam sentindo a perda de seu semelhante.

Como se fosse uma professora que acaba de dar uma explicação, a velha voltou-se para o mapinguari flechado.

- Você fugiu após ser atingido? – o animal confirmou com um aceno de cabeça – E você foi seguido até aqui?! – a pergunta pareceu soar mais como uma acusação, pois o mapinguari começou a tremer e gesticular negativamente como se estivesse tomando um choque.

- Se você não foi seguido, como você me explica esse guardião aqui em cima da maloca espreitando tudo o que está acontecendo? – dizendo isso, a velha agiu tão rápido que não pude me mexer, seu feitiço me atingiu na barriga onde senti uma dor horrível como se um anzol em brasa me puxasse pelo umbigo, eu caí de joelhos na sua frente, rodeado por uma manada de mapinguaris que pareciam ter esquecido a repentina morte de seu irmão, e estavam apenas esperando a ordem para me atacar. A mão da velha puxou meu cabelo para trás e me olhou com uma cara que expressava nojo e ódio, ela cuspiu no meu rosto.

- Guardiãozinho vagabundo. Espiando, é só o que sabem fazer, espiar. – ainda paralisado sobre o efeito do feitiço que me prendeu, senti meu rosto arder com uma tapa que quase arranca minha pele – Diga-me uma coisa – ela aproximou sua face tão perto da minha que a ponta do seu nariz quase toca o meu – Porque o líder dos Guardiões, o Mestre da Selva não vem pessoalmente atrás de mim? Será que Mestre Raoni está tão ocupado assim? Mandando um vassalo me deter? Tsc, tsc, seu líder não se importa com você guardião, ele mandou você para morte, e cá entre nós, acho que ele não dá à mínima. – ela se ergueu e caminhou de costas ainda me encarando – Mas serei misericordiosa guardião, deixarei você tentar se defender, e olha, você tem muita chance, você é um e eles... – apontou sorrindo para os mapinguaris – São mais de cem! – sua gargalhada fria e seca ecoou alto ao mesmo tempo em que senti meu corpo livre do feitiço, tive que agir rápido, coloquei as mãos no chão e concentrei todas as partículas de ar que havia no solo da maloca, direcionei a massa de ar para baixo da velha matinta, e com uma explosão de vento o ar saiu de dentro da terra como um turbilhão surpreendendo a todos e atingido-a no tórax, no instante em que ela foi arremessada para cima varando o teto, saltei atravessando o mesmo buraco que caí segundos antes.

“Foi tudo tão rápido que as feras, no instante que iam me atacar, pararam sem entender nada, vendo a velha subir e eu logo atrás, pensaram talvez que ela havia feito outro feitiço, não sei. Então quando saí da maloca, vi a velha parada no ar, suspensa me esperando com as mãos espalmadas, delas saiu um raio tão forte e tão rápido que na velocidade que eu estava subindo mal deu para esquivar, o ataque passou raspando pela minha perna e senti o sangue morno escorrer pelo meu joelho, ainda assim atingi uma altura maior que a dela, e era justamente o que eu pretendia, mais uma vez tive de ser rápido, focalizando minha mira somente na maloca, eu realizei o Tupãrani.”

- Tupã... O quê? – perguntou Ka’á

- Tupãrani. A Tempestade Divina. – explicou Raoni – Consiste em concentrar todo o ar num raio de mil metros a sua volta e dispará-lo violentamente contra um único alvo, este é desintegrado com a força do impacto, mas isso é uma técnica muito avançada meu rapaz, estou realmente assombrado, lembro-me vagamente que na última reunião sobre os atentados na selva, mencionei o fato de todos vocês precisarem de treinamento, mas não sabia que o resultado seria esse.

- O treinamento ajudou bastante, mas, talvez por estar numa situação de vida ou morte, essa foi a primeira vez que tive êxito no Tupãrani, é realmente uma técnica assombrosa, a matinta, a maloca e os mapinguaris dentro dela sumiram, todos, aliás, tudo sumiu, o que restou no lugar da maloca foi um pequeno deserto no meio da mata, nada ficou vivo, Por isso eu selei esse golpe, não devo usá-la novamente a não ser que seja necessário.

- Essa é uma decisão sábia, não lamente pelo o que aconteceu, pois isso salvou a sua vida e nos trouxe uma informação extremamente relevante – Raoni levantou e andou até a parede com o mapa, ergueu sua bengala e apontou para cinco símbolos vermelhos em forma de círculo com inscrições em volta – Esses cinco sinais indicam o local dos cinco atentados recentes, na nossa última reunião coube a cada um de vocês cuidarem de um atentado diferente. Isso tudo foi planejado por alguém que ainda não se revelou, não acredito que a matinta tenha planejado isso, mas sem dúvida estava participando, se ela sabia ou não, isso eu não sei dizer, mas suponho que sim, os atentados eram para nos manter ocupados enquanto os mapinguaris procuravam a Samaúma para a matinta sem que nós atrapalhássemos o plano deles, o que ela subestimou foi à amizade de Cauã e Ajuricaba, talvez ela tenha achado que por orgulho, o Cacique não recorreria aos guardiões.

- Mas o quê ela queria com uma simples árvore? – Perguntou Naya

- Essa Samaúma que ela se referia não é uma simples árvore, é um Oráculo!

- UM ORÁCULO? – Exclamaram todos em coro 

- Sim, um Oráculo, eu até arriscaria em dizer que é o Oráculo mais poderoso que a Existência nos presenteou. E se minhas contas estão certas, ela vai encarnar hoje à noite.

- Como assim “encarnar”? – quis saber Ka’á

- O Oráculo é um espírito de uma pajé que viveu há muitos anos na tribo Jaci, seu poder era tão grande que mesmo após sua morte, ele ficou conservado em seu espírito, então quando a sétima lua cheia do ano se coincide com o dia sete do sétimo mês, ela encarna na Samaúma, mas o tempo é curto, só dura alguns minutos enquanto os raios de lua tocam a copa da árvore diretamente.

- Nossa! Quantos setes! Mas o quê será que a matinta queria com o Oráculo? – indagou Naya.

- Isso nós poderemos saber hoje à noite. – respondeu Raoni

- Mas como? – quis saber Max já prevendo a resposta

- Hoje meus irmãos, é o sétimo dia do sétimo mês, e a sétima lua cheia do ano acontecerá esta noite.

- Mas se nem os mapinguaris acharam a Samaúma em seis meses, como nós acharemos em algumas horas? – perguntou Bira

- Porque conheço uma pessoa que sabe a localização – e virando para Cauã disse – Leve-nos até a aldeia Jaci, precisamos que Ajuricaba retribua um favor seu.


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