Capítulo I
O sol
ainda não nascera quando o rapaz avistou, apesar da densa neblina, o casebre
que ficava no fim de um longo trecho da estrada, as margens de um riacho, numa
região do alto Rio Negro. Não havia casas por perto, e os moradores desta
região só passavam por aquelas bandas quando visitavam o vilarejo vizinho em
épocas de festejos. O que o rapaz achava muito bom por sinal, não gostaria de
ficar sendo seguidos por olhares curiosos, achava que sua aparência de mal
cuidado com o cabelo escuro desarrumado, as grandes olheiras que ganhou nos
últimos dias e a capa negra que trajava não era apropriada para aquele local tão inóspito.
À medida que se aproximava, a
imagem do casebre se tornou mais nítida, e ele conseguiu avistar a silhueta de
um inquieto homem na varanda tragando um cigarro. Com a capa igual a dele
exceto por umas manchas gordurosas espalhadas pelo peito e pela manga, o homem
era corpulento, com cabelo ralo de uma cor queimada, ombros curtos, olhos redondos
que davam a nítida impressão de pertencer a um cavalo assustado e seus dentes
eram amarelados devido ao exagerado consumo do fumo. Estava observando o rapaz
há muito tempo, e quando finalmente o enxergou com clareza, deu um grande
sorriso como alguém que se lembra de algo muito engraçado. Subindo uma pequena escada de três degraus o
rapaz disse:
- Bom dia
Bira! Ele já chegou? - perguntou notando a grande quantidade de pontas de
cigarros espalhadas pelo chão.
- Ainda
não - Bira respondeu tentando esconder a excitação na voz - Mas o pessoal já
está ai dentro, fazendo muito barulho como sempre – desviou os olhos do rapaz
para observar cuidadosamente o lugar em volta - Ele sabe que detesto
esse lugar, é estranho e não me sinto seguro. Não sei porquê ele insiste em
vim para cá!
- Ele deve
ter lá suas razões, você sabe como ele é - deu um longo bocejo e comentou - Só
não gosto quando tenho que levantar cedo, estou sem dormi direito há uma semana
depois do que aconteceu.
- Nos
estamos nesse fim de mundo e você vem me reclamar da sua insônia! Ah, não seja
prepotente Cauã!
- Pois saiba
que meu sono é muito mais importante que seus caprichos e medos. E os últimos
acontecimentos me fizeram repensar muito em tudo que ele comentou da última
vez.
Com esse
comentário Cauã desceu, pegou umas pedras e ficou atirando-as no riacho, Bira apagou o
cigarro e continuou olhando apreensivo para a floresta que os cercavam.
- Não é
capricho, muito menos medo, é cuidado! Não sou como você, o
“grande-ultra-espetacular” Cauã... – jogou a bituca e fez uma estranha e cômica
imitação de um super-herói – Por falar nisso, eu estou morrendo de curiosidade,
é verdade essa história maluca que os outros andam dizendo?! Eu nunca ouvi
falar que alguém escapou com vida depois de fazer o que você fez, estão todos
comentando, é verdade mesmo Cauã?! Há boatos espalhados por toda floresta, não
se fala em outra coisa, dizem que você derrotou todos de uma vez só!
- Ah, dá
um tempo! Você sabe que aumentam muitos os fatos.
- Mas, que
não deixam de serem fatos – sentou-se olhando Cauã jogar sua última pedra –
Sabe, eu também andei analisando tudo o que foi discutido da ultima vez. Quero
dizer, não há como negar, as coisas estão acontecendo com muita rapidez e frequência,
as pessoas não são burras, elas estão notando que há algo diferente no ar, vai
ter uma hora que não vamos mais poder conter e esconder. Nós todos estamos
sobrecarregados, somos poucos e temos que cuidar de cada detalhe por minúsculo
que seja. – acendendo outro cigarro, ele olhou para as nuvens que estavam num
tom avermelhado – A grande guerra não vai tardar a acontecer. Eu a sinto todos
os dias se aproximando, eu sonho com as mortes, a destruição, o caos. Ouça o
que estou lhe dizendo Cauã... O que foi? Viu alguma coisa?
- Não,
nada. – mentiu – Sabe Bira, às vezes você parece saber muito das coisas, e às
vezes você parece um tolo que foi iniciado há pouco tempo. A grande guerra da
qual você falou, já começou meu caro. Ela ainda não foi declarada se é isso que
você quer dizer, mas já começou. Estamos numa espécie de guerra oculta, ninguém
ataca ninguém diretamente, mas...
Nesse momento
uma voz, que parecia pertencer a alguém que já estava ali há muito tempo, ecoou
da mata atrás deles:
- Mas as peças já estão no tabuleiro, sim. De fato isso é verdade.
Cauã e
Bira viraram-se e depararam com um velho, de baixa estatura, pele clara e meio
corcunda, talvez devido à idade ou talvez por segurar um grande balaio coberto
com folhas de bananeiras. Seus olhos eram claros e expressivos, usava um chapéu
de palha com grandes abas, uma camisa branca de botão e uma calça de pescador
enrolada até os joelhos e tinha os pés descalços.
Cauã o
encarou por um tempo, como se estivesse analisando a aparência do velho, que
por sua vez fazia o mesmo. O momento em que os olhares se enfrentaram pareceu
durar uma eternidade, por fim o rapaz deu um sorriso de canto e fazendo uma reverência
disse:
- Mestre,
há quanto tempo...
Bira,
percebendo a situação, fez o cigarro se transformar em fumaça com um estalo de
dedos e imitou a pose de Cauã sem dar uma palavra, ficou apenas observando.
O velho
colocou o balaio lentamente no chão, limpou as mãos na camisa e sem tirar os
olhos de Cauã disse:
-
Disseram-me que estava morto!
- Poucos
são aqueles que sabem o que dizem e muitos são aqueles que dizem o que não sabem, Mestre.
- disse Cauã ainda na sua posição de reverência, mas sem romper o contato visual.
Então o silêncio foi quebrado por uma grande gargalhada do velho que abriu os
braços dizendo:
- É
verdade, é verdade! Você aprende rápido. Venha, dei-me cá um abraço rapaz! – e
os dois se abraçaram como pai e filho. Então, largando Cauã, o velho disse: -
Fiquei sabendo de sua aventura, mas realmente pensei que estivesse morto, como
sobreviveu?
- Essa é
uma longa história Mestre, que terei prazer em contá-la.
- História?
Façanha é uma palavra melhor para descrever, pelo que soube! De qualquer modo,
eu terei muito prazer em ouvi-la, mas primeiro vamos entrar, o sol já está
nascendo e não quero mais deixá-los esperando por muito tempo, já estão todos
aí, suponho.
- Sim
Mestre, todos já chegaram. - antecipou-se Bira, aproveitando a oportunidade
para falar com o velho. - Estou muito contente de revê-lo tão bem!
- E você
me deixaria contente se parasse de tremer! Estou ouvindo o barulho dos seus
ossos desde que cheguei.
- Não
gosto daqui Mestre, o Senhor sabe...
- Tolice
rapaz, não há nada o que temer. Vamos, os outros estão esperando somente por
nós.
Os três
entraram no casebre no momento em que os primeiros raios de sol tocaram as
águas do riacho.