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terça-feira, 4 de abril de 2017

RdN - Contos Ocultos #Capítulo I

Capítulo I
O sol ainda não nascera quando o rapaz avistou, apesar da densa neblina, o casebre que ficava no fim de um longo trecho da estrada, as margens de um riacho, numa região do alto Rio Negro. Não havia casas por perto, e os moradores desta região só passavam por aquelas bandas quando visitavam o vilarejo vizinho em épocas de festejos. O que o rapaz achava muito bom por sinal, não gostaria de ficar sendo seguidos por olhares curiosos, achava que sua aparência de mal cuidado com o cabelo escuro desarrumado, as grandes olheiras que ganhou nos últimos dias e a capa negra que trajava não era apropriada para aquele local tão inóspito. 
À medida que se aproximava, a imagem do casebre se tornou mais nítida, e ele conseguiu avistar a silhueta de um inquieto homem na varanda tragando um cigarro. Com a capa igual a dele exceto por umas manchas gordurosas espalhadas pelo peito e pela manga, o homem era corpulento, com cabelo ralo de uma cor queimada, ombros curtos, olhos redondos que davam a nítida impressão de pertencer a um cavalo assustado e seus dentes eram amarelados devido ao exagerado consumo do fumo. Estava observando o rapaz há muito tempo, e quando finalmente o enxergou com clareza, deu um grande sorriso como alguém que se lembra de algo muito engraçado. Subindo uma pequena escada de três degraus o rapaz disse:
- Bom dia Bira! Ele já chegou? - perguntou notando a grande quantidade de pontas de cigarros espalhadas pelo chão.
- Ainda não - Bira respondeu tentando esconder a excitação na voz - Mas o pessoal já está ai dentro, fazendo muito barulho como sempre – desviou os olhos do rapaz para observar cuidadosamente o lugar em volta - Ele sabe que detesto esse lugar, é estranho e não me sinto seguro. Não sei porquê ele insiste em vim para cá!
- Ele deve ter lá suas razões, você sabe como ele é - deu um longo bocejo e comentou - Só não gosto quando tenho que levantar cedo, estou sem dormi direito há uma semana depois do que aconteceu.
- Nos estamos nesse fim de mundo e você vem me reclamar da sua insônia! Ah, não seja prepotente Cauã!
- Pois saiba que meu sono é muito mais importante que seus caprichos e medos. E os últimos acontecimentos me fizeram repensar muito em tudo que ele comentou da última vez.
Com esse comentário Cauã desceu, pegou umas pedras e ficou atirando-as no riacho, Bira apagou o cigarro e continuou olhando apreensivo para a floresta que os cercavam.
- Não é capricho, muito menos medo, é cuidado! Não sou como você, o “grande-ultra-espetacular” Cauã... – jogou a bituca e fez uma estranha e cômica imitação de um super-herói – Por falar nisso, eu estou morrendo de curiosidade, é verdade essa história maluca que os outros andam dizendo?! Eu nunca ouvi falar que alguém escapou com vida depois de fazer o que você fez, estão todos comentando, é verdade mesmo Cauã?! Há boatos espalhados por toda floresta, não se fala em outra coisa, dizem que você derrotou todos de uma vez só!
- Ah, dá um tempo! Você sabe que aumentam muitos os fatos.
- Mas, que não deixam de serem fatos – sentou-se olhando Cauã jogar sua última pedra – Sabe, eu também andei analisando tudo o que foi discutido da ultima vez. Quero dizer, não há como negar, as coisas estão acontecendo com muita rapidez e frequência, as pessoas não são burras, elas estão notando que há algo diferente no ar, vai ter uma hora que não vamos mais poder conter e esconder. Nós todos estamos sobrecarregados, somos poucos e temos que cuidar de cada detalhe por minúsculo que seja. – acendendo outro cigarro, ele olhou para as nuvens que estavam num tom avermelhado – A grande guerra não vai tardar a acontecer. Eu a sinto todos os dias se aproximando, eu sonho com as mortes, a destruição, o caos. Ouça o que estou lhe dizendo Cauã... O que foi? Viu alguma coisa?       
- Não, nada. – mentiu – Sabe Bira, às vezes você parece saber muito das coisas, e às vezes você parece um tolo que foi iniciado há pouco tempo. A grande guerra da qual você falou, já começou meu caro. Ela ainda não foi declarada se é isso que você quer dizer, mas já começou. Estamos numa espécie de guerra oculta, ninguém ataca ninguém diretamente, mas...
Nesse momento uma voz, que parecia pertencer a alguém que já estava ali há muito tempo, ecoou da mata atrás deles:
- Mas as peças já estão no tabuleiro, sim. De fato isso é verdade.
Cauã e Bira viraram-se e depararam com um velho, de baixa estatura, pele clara e meio corcunda, talvez devido à idade ou talvez por segurar um grande balaio coberto com folhas de bananeiras. Seus olhos eram claros e expressivos, usava um chapéu de palha com grandes abas, uma camisa branca de botão e uma calça de pescador enrolada até os joelhos e tinha os pés descalços.
Cauã o encarou por um tempo, como se estivesse analisando a aparência do velho, que por sua vez fazia o mesmo. O momento em que os olhares se enfrentaram pareceu durar uma eternidade, por fim o rapaz deu um sorriso de canto e fazendo uma reverência disse:
- Mestre, há quanto tempo...
Bira, percebendo a situação, fez o cigarro se transformar em fumaça com um estalo de dedos e imitou a pose de Cauã sem dar uma palavra, ficou apenas observando.
O velho colocou o balaio lentamente no chão, limpou as mãos na camisa e sem tirar os olhos de Cauã disse:
- Disseram-me que estava morto!
- Poucos são aqueles que sabem o que dizem e muitos são aqueles que dizem o que não sabem, Mestre. - disse Cauã ainda na sua posição de reverência, mas sem romper o contato visual. Então o silêncio foi quebrado por uma grande gargalhada do velho que abriu os braços dizendo:
- É verdade, é verdade! Você aprende rápido. Venha, dei-me cá um abraço rapaz! – e os dois se abraçaram como pai e filho. Então, largando Cauã, o velho disse: - Fiquei sabendo de sua aventura, mas realmente pensei que estivesse morto, como sobreviveu?
- Essa é uma longa história Mestre, que terei prazer em contá-la.
- História? Façanha é uma palavra melhor para descrever, pelo que soube! De qualquer modo, eu terei muito prazer em ouvi-la, mas primeiro vamos entrar, o sol já está nascendo e não quero mais deixá-los esperando por muito tempo, já estão todos aí, suponho.
- Sim Mestre, todos já chegaram. - antecipou-se Bira, aproveitando a oportunidade para falar com o velho. - Estou muito contente de revê-lo tão bem!
- E você me deixaria contente se parasse de tremer! Estou ouvindo o barulho dos seus ossos desde que cheguei.
- Não gosto daqui Mestre, o Senhor sabe...
- Tolice rapaz, não há nada o que temer. Vamos, os outros estão esperando somente por nós.

Os três entraram no casebre no momento em que os primeiros raios de sol tocaram as águas do riacho.

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